Estamos a viver um período que vai marcar a música portuguesa para sempre. A tendência já vem dos últimos anos mas 2014 parece ter sido o ano do boom da Lusofonia Musical. Este ano saíram dezenas de álbuns nacionais, é certo que quantidade não é qualidade, mas a verdade é que a maior parte deles são grandes álbuns, discos que sem dúvida vão resistir ao escrutínio do tempo e que vamos continuar a ouvir daqui a muitos anos. Felizes aqueles que testemunham hoje este período. Daqui a 20 anos quando se fizerem documentários sobre esta Era da música nacional vai dizer-se que foi um dos períodos mais criativos de sempre em Portugal, com uma cena musical efervescente, com uma união quase incomum entre músicos. E felizes aqueles que testemunham isto agora, que compram os discos, que vão aos concertos.
O nosso top ilustra esta vertigem criativa. Anda a fazer-se muito boa música, em diversos géneros, do psicadelismo ao hip hop, do rock musculado à subtileza da guitarra acústica, passando por sintetizadores manipulados com mestria. Cantado, instrumental, tocado por virtuosos ou apenas com entrega total. Dos novos que acabam de formar bandas aos não tão novos, que já andam nisto há pelo menos uma década. 2014 foi um ano excepcional na música feita por portugueses, mas que, se houvesse um padrão, nunca estariam abaixo da música mais avançada que se faz na Europa e no mundo. Mas «com grande poder vem grande responsabilidade». Depois de tão exímia fornada, os nossos estimados músicos vêm elevar a fasquia e criar uma necessidade de qualidade no consumo futuro dos fãs. Mas mesmo que não consigam e nunca mais venhamos a ter mais do que um ou dois grandes discos por ano, pelo menos estes já ninguém nos tira. E saíram todos no espaço de 12 meses.
20. Clã – Corrente
Os Clã já são uma instituição. Andam nestes meandros há mais de 20 anos e obrigam-nos a usar clichés: esta banda não sabe fazer discos maus. Corrente prova isso mesmo. Em 14 canções, Manuela Azevedo e seus magníficos oferecem-nos um disco bastante bonito. Os Clã são mestres na arte de criar melodias pop que se trauteiam com enorme facilidade, mas também se estabeleceram como excelente banda de rock. Neste álbum, voltam a misturar num bom equilíbrio as doses certas de guitarradas e de acalmia baladeira. E fazem-no sempre no mais profundo respeito e bom trato da Língua Portuguesa.
19. António Zambujo – Rua da Emenda
A Rua da Emenda é António Zambujo. É um disco cuidado, de uma escrita imensa, de valor e personalidade, bom gosto e vivacidade. Há convidados, tributos a Noel Rosa ou Serge Gainsbourg , um saudável cocktail de influências musicais de diversos países – Brasil, França, boa parte do continente africano – que não se confundem com a portugalidade que atravessa todas as 15 cantigas do álbum. Zambujo é um nome cada vez maior que alia uma esperteza pop à sabedoria de quem mexe com cuidado no melhor repertório português do passado, cruzando influências do fado ou do cançonetismo mais tradicional. A Rua da Emenda é António Zambujo. E isso é bom, muito bom.
Clarão, segundo álbum dos lisboetas PAUS, não é o disco mais fácil do mundo de se ouvir. Violento, agressivo e intempestivo, é um trabalho impróprio para espíritos tranquilos – para os restantes, é aquele murro na mesa que muitas vezes queremos e não podemos dar. E isto é um elogio. Clarão é tribal, estrangula e atropela. Não é o disco para trazer no carro para seduzir a companhia que levámos ao cinema, dificilmente conterá as canções a serem ouvidas no nosso casamento. Mas é o álbum do sexo e do amor selvático e revigorante, desprendido embora intenso, caótico na urgência do hoje e agora, mas ainda assim com os pés no chão e um bom gosto assinalável. Esqueçam os jantares às luzes das velas e as compilações «chill out» do Café del Mar. Este disco não é para meninos.
17. The Lazy Faithful – Easy Target
Neste primeiro longa duração, o garage rock «apunkalhado» que já conhecíamos do EP Nothing Goes On continua a ser o tom dominante. Canções-pólvora como a «Work It On Out», a «Good Night» e «Discussions» são como os The Hives soariam se tivessem tido uma alimentação à base de finos e francesinhas. O baixo hiperactivo, a bateria-motor-de-explosão, as guitarras-testosterona, a voz gritada à MC5: tudo nestes tripeiros é fôlego e intensidade. Easy Target não é só urgência e sangue na guelra. Podem andar a maior parte do tempo a 200 à hora em contra-mão, mas quando querem conduzem o carro suavemente, pondo toda a sua sensibilidade pop e melancólica nas suas canções (grandes malhas como a «Two Lines in the Sky» e a «Easy Target»). É neste delicado equilíbrio entre explosão e introspecção, raiva e silêncio que se faz um grande disco.
16. Keep Razors Sharp – Keep Razors Sharp
O álbum de estreia homónimo da banda está lançado e o objectivo foi cumprido. Se uma vez explicaram que o superpoder do grupo era o dom da invisibilidade, o mesmo não se passa com a música que fazem que: não é de todo invisível, não passa de maneira nenhuma despercebida. A banda exclui adjectivos altivos ou nobres ao falar de si mesma, mas o álbum é rico. Essa riqueza encontra-se, essencialmente, nos solos de guitarra intensos, na bateria forte e na voz arrastada muito rock ‘n’ roll e com timbre psicadélico, mostrando que a qualidade de música que fazem é espelho da própria simplicidade da banda.
Carlão, Fred e Regula são figuras incontornáveis do hip-hop e zonas adjacentes, a solo ou em inúmeros projectos. Neste disco de estreia, homónimo, convocam aliados como Sam the Kid para nos trazerem um hip-hop maduro, frio, metálico, «mais Nova Iorque do que Margem Sul», como escrevemos na crítica original ao disco. Batidas certeiras, arranjos de um extremo bom gosto e letras pessoais e sem pedir licença a ninguém são ingredientes de um álbum que, arriscamos, ficará para a história do hip-hop nacional.
Pop leve e solarenga não é sinónimo de descartável ou com falta de qualidade, felizmente. Exemplos há muitos, e o projecto Duquesa estreia-se em 2014 para voltar a provar isso mesmo. Disco a solo de Nuno Rodrigues, vocalista dos Glockenwise, de Barcelos, conta com poucos temas mas deixa-nos com vontade de mais e mais. “Duquesa cai mais naquela onda de Wilco, Yo La Tengo ou Mac DeMarco. Excelente portanto. Temos aqui então um óptima banda sonora para aqueles dias de férias em que associamos praia ou campo, sol até às 9 da noite, cervejas e caracóis e a melhor das companhias, um grupo de amigos e as suas namoradas giras”, foi o nosso veredicto em Junho. Um projecto que viu a luz do dia este ano e que, alertamos, convém manter debaixo de olho no futuro.
13. Throes + The Shine – Mambos De Outros Tipos
Querem festa? Então vieram ao lugar certo. Se os Buraka Som Sistema partiram o kuduro e o embebedaram de electrónica, os Throes + The Shine partem do mesmo sítio mas lambuzam-se de rock. O novo álbum dos T+TS volta a ter muamba como prato principal, mas ganha novos sabores. O principal factor que os distinguiu (e ainda distingue), a pioneira junção de rock com ritmos africanos, continua viva e de boa saúde, se bem que revisitados: o rock passa a saltitar entre o punk, característico do primeiro trabalho, e o progressivo, com especial destaque para a autêntica locomotiva que é a bateria de Igor Domingues (veja-se «T’ambora Bom»). O kuduro mais linear de antes evolui e começa a tocar no funaná. A junção soa estranha, mas acreditem, é venenosamente contagiante. Temos em mão um festival de cowbell, percursão, riffs agressivos, animação e, basicamente, festa. Festa rija.
12. Mão Morta – Pelo Meu Relógio São Horas De Matar
Pelo Meu Relógio São Horas de Matar é um disco que, tal como os Mão Morta quase sempre fizeram, é mais do que um mero disco. É um statement artístico e político, um documento que só poderia chegar nos anos de chumbo da troika, dos cortes, da normalização da obsessão com o défice e o esquecimento das pessoas, da arte, da vida. No vídeo para o single «Horas de Matar», o carismático Adolfo Luxúria Canibal surge a disparar sobre banqueiros e políticos, enquanto perora sobre tudo o que nos tiraram. Gesto demasiado arrojado para uma banda com estatuto de velha glória? Isso não existe no dicionário da banda de Braga. Onde o disco anterior, Pesadelo em Peluche, era divertido, pop e sarcástico, Pelo Meu Relógio… é sério, indigesto e violentamente directo. E, já agora, um tremendo senhor disco. Lento, agressivo, minimalista, poderoso. Ficamos contentes por ter os Mão Morta ainda por cá, a correr riscos, e do nosso lado. A reforma pode esperar.
11. Norberto Lobo – Fornalha
Revolver dos Beatles. Transition de John Coltrane. Fornalha de Norberto Lobo. É comum encontrar na discografia de artistas colossais aquele ousado álbum que arrisca, em relação ao anterior. Fornalha é o disco que arriscou: fez descansar o típico abuso no trinar doce da guitarra, vistos em trabalhos como Mel Azul (2012), para petiscar com um noise orgânico e melancólico. Este disco vive da madura gestão que Norberto Lobo fez entre os momentos limpos e aconchegantes com os momentos sujos e experimentais. Mas onde reside o selo dourado deste disco? Fornalha é um disco instrumental que faz sentido do início ao fim. Seja na experimentalidade cósmica da primeira metade ou na ternurenta e instrospectiva segunda metade.