Eis que, ao quarto dia, a música electrónica chegou em força a Paredes de Coura. Kelly Lee Owens, The Blaze e Arp Frique & Family em destaque, numa noite em que esta electrónica eclética se revelou aposta certa, ao contrário de um Ty Segall em modo Guitar Hero, mas muito pouco inspirado.
Depois de três dias de intensas lides festivaleiras, seria expectável que algum cansaço se fizesse sentir, as pernas já vão pedindo tréguas, as gargantas estão um pouco mais roucas, mas tudo isso fica aparentemente esquecido quando a música envolve o corpo, o grave é omnipresente, a batida a apelar ao headbang, e todo o cansaço fica esquecido. Depois de dois anos sem Coura, a vontade de celebrar esta reunião também veio, aparentemente, com força redobrada.
Será justo dizer que Paredes de Coura é essencialmente um festival mais virado para o Rock, onde as guitarras serão o instrumento mais presente, com destacada vantagem. No palco Vodafone FM, a representar a equipa das guitarras pela segunda vez em Coura esta semana, apresentaram-se os portuenses Baleia Baleia Baleia, rock vitaminado, generoso na ginga e atitude. Foram recebidos por uma audiência atenta, que ia respondendo positivamente às várias declarações de amor que a banda foi largando, ora ao festival, ora ao público presente.

Logo depois, no palco principal, estreia nacional para a britânica Arlo Parks e para a sua indie-soul emocional e açucarada. Parks, de apenas 22 anos, tem sido considerada como parte de uma nova vaga de cantoras e compositoras onde a representação negra, feminista e queer é uma parte essencial da sua obra. Canções cristalinas e desempoeiradas sobre saúde mental, sexualidade, aceitação da sua própria vulnerabilidade, fazem parte um imaginário colectivo cada vez mais palpável.
Alinhando o concerto essencialmente nas canções do disco do ano passado e vencedor do Mercury Prize, Collapsed in Sunbeams, temas como “Hope”, “Caroline”, “Black Dog”, escrita para um amigo e inspirada por House Of Cards dos Radiohead, vão arrancando aplausos e entusiasmo colectivo. Houve um breve momento em que o som falhou por alguns segundos e a banda e público continuam cantorias como se nada houvesse para além de estar ali, naquele instante a viver aquele momento. A voz aveludada, doce, é embalo e encanto perfeito para o sol que se vai escondendo, abrindo lugar para as tribulações techno de Kelly Lee Owens, exactamente no mesmo palco.

Originalmente programada para o palco secundário, e num horário mais madrugador, fruto do cancelamento de King Gizzard & The Lizard Wizard, a galesa viu o seu concerto mudar de ares e ter maior destaque. E, se não se pode dizer que tenha sido uma má aposta, também não foi ganha completamente. A sua música, techno da mesma escola existencialista onde Burial, Jon Hopkins, ou Daniel Avery deixaram e vão deixando marca, é de um cariz que, num festival deste registo, terá certamente sido incompreendido por alguns presentes. A electrónica de Inner Song e do mais recente Lp.8, é mais dada à contemplação, a um fechar de olhos e imersão total nas texturas e ambientes sonoramente esculpidas, que acabaram por marcar uma primeira parte do concerto que certamente causou alguns bocejos, embora nada se possa apontar à sua performance. Assim que o registo mudou, e o caminho foi sendo arrepiado até ao encontro com um techno mais brutalista de apetite aguçado pelo choque, a sua passagem em Coura foi acontecendo em crescendo, terminando em altas um concerto que, provavelmente, a fechar uma noite no palco secundário, teria ficado dentro dos melhores concertos do festival.

Já com a noite bem instalada e com o frio a fazer-se convidado, muitos foram os que se deslocaram ao palco secundário em momentos distintos para pôr os olhos primeiro em Boy Harsher, e Arp Frique no concerto seguinte. Dois mundos completamente diferentes, mas com respostas semelhantes. Enquanto que a Synth e Darkwave do duo norte-americano Boy Harsher é negrume intenso, construção lenta, repetição, um oceano de reverb a fazer submergir a sua música, a música do sexteto holandês liderado por Niels Nieuborg é o total oposto. Ritmo e alegria contagiante, Afro Beat e Disco Funk, tudo ao mesmo tempo, foi o tónico certo para o espírito festivaleiro e para essa missão sempre honrosa que é dançar e fazer dançar.

As honras de cabeça de cartaz deste quarto dia de festival foram divididas entre Ty Segall, acompanhado pela sua Freedom Band, e os franceses The Blaze. O primeiro reservou para si uma hora e pouco de concerto, que foi passado essencialmente a rever as músicas do disco recém lançado, Hello, Hi. Embora este último seja um disco essencialmente acústico, mais virado para dentro do que qualquer outro da prolífica obra do californiano até à data, em Coura, a sua apresentação deu-se com toda a electricidade, num concerto, que apesar do muito pó levantado, mosh, crowdsurfing e outras tropelias de efusividade imberbe, foi um longuíssimo bocejo.
É sempre um prazer escutar e rever Ty Segall, mas nesta noite em particular, algo não bateu certo. Que o californiano é um prodígio na guitarra ninguém duvida, que ele talvez, melhor do que ninguém, sabe como fazer Rock ’N Roll na sua forma mais clássica, e tem um papel fundamental na revitalização de um género que tão frequentemente não constrói nada para além da pura adoração e reverência para com o passado. Mas ontem tudo soou oco, desinteressante, como se apesar da potência, da energia punk e grunge de cada power chord, do fogo daqueles solos de guitarra, este não passassem de mais uma revisão estilística. E foi uma pena, porque já vimos excelentes concertos de Ty Segall em Portugal, mas este não foi um deles.

História bem diferente para o duo francês The Blaze, Guillaume e Jonathan Alric, malta do cinema que foi ficando nas bocas do mundo não só, mas também, pelos videoclipes realizados. Trouxeram até Coura um espectáculo visual portentoso, apoiado nas projecções em cinco grandes e rotativos ecrãs Led, que iam ditando temas e cadências visuais para completar a electrónica antémica destes rapazes.
“Territory” e “Places” são exemplos maiores da sua discografia, canções house-pop, talhadas para a celebração, concebidas por cima beats graves que se agigantam e contrapõem uma qualidade sonhadora, imaginativa, que, em consonância com as projecções de cores intensas, momentos como pessoas a correr numa praia, cães selvagens, uma jovem a dançar em preto e branco, vão denotando sobriedade e imersão, lutando contra algo que na sua música facilmente poderia encaixar numa publicidade de operadora de telemóvel.
Coura respondeu em força, o recinto cheio à 1h30 da manhã a pular e dançar como se não houvesse amanhã, uma imagem condizente com aquilo que os franceses desejariam, e um bom prenúncio para o último dia, que chega com Pixies, Yves Tumor ou Princess Nokia como destaques.
Fotografias: Francisco Fidalgo