Incubadora Altamont

Vida Salgada. O ABC da redenção, segundo Filipe Sambado

Filipe Sambado quer ter, der por onde der, “uma vida condimentada” – e Vida Salgada (2016), o seu disco de estreia, lançado num Domingo de Misericórdia  (dia 3 de abril), é a penitência que liberta um homem que procura “fazer as pazes consigo próprio”. Anos e anos, entre “sensações desnecessárias” e viagens, o percurso do jovem Sambado, que já “lavrou terra no campo e lançou redes ao mar”, culminou neste disco, repleto de hinos de redenção. Já em Lisboa desde os 19 anos, Sambado “aprendeu e ensinou a amar”, encontrando um lar, ouvindo Beatles e Fleetwood Mac e fazendo música – sozinho e acompanhado. Depois de três EPs a solo, Vida Salgada é a sua primeira grande manifestação: aquilo que é, tal como conta ao Altamont, a retropetiva da sua libertação.

Pode parecer, mas o disco não é triste. Foi fazer as pazes com muita coisa que foi pesada durante muito tempo e é um disco muito em paz. (…) Afinal, na música “Vida Salgada” o que ‘tou a dizer no refrão é que não quero uma vida insossa.

Encontrámo-lo sozinho, sentado nas traseiras da Interpress, lar dos estúdios do Teatro do Bairro e do jornal Observador. De cigarro entre os dedos, cujas unhas estavam pintadas de cores aleatórias, Sambado saudou-nos fraternalmente. O hábito das unhas pintadas, que já quase servem como imagem de marca do músico, veio por “um acaso”: “A primeira vez que pintei as unhas foi a minha irmã que me pintou. Estávamos sem nada para fazer e ela quis-me pintar as unhas. E depois, à segunda vez, pintei eu e fui pintando, fui pintando sempre, e agora tenho sempre as unhas pintadas, já para aí há 2 anos”, explicou ao Altamont, garantindo que, ainda hoje, acha “muito difícil” a tarefa de pintar as unhas. “Mas o processo serve para relaxar um bocadinho [risos]”, acrescentou.

Mas a relação de Sambado com a música começara muito antes de pintar as unhas. Aquando garoto, “por volta dos 9 ou 10 anos”, recebeu uma guitarra – mas não sabia tocar, nem teve aulas. “Pegava naquilo e só mexia nas cordas”, explicou. Mesmo com poucas noções, Sambado lembra-se de compor as primeiras canções e de “tentar tirar uns sons”. Apesar da música correr no sangue da família – o tio tocava numa banda punk e o avô cantava -, Filipe explicou que foi entre amigos que expandiu a sua curiosidade e perícia músical:

“Eu tinha mais interesse em tocar de tudo um bocadinho do que propriamente a guitarra. Depois comecei a tocar melhor guitarra e melhor bateria, que são os 2 instrumentos que toco melhor”.

Durante a adolescência, ao atravessar a fase do hip hop, fez rap “por não saber cantar e por querer se expressar”, e nunca teve um lar fixo porque ia, de fim-de-semana em fim-de-semana, de casa da mãe para casa do pai. “Os meus pais quando eu era miúdo separaram-se e, como eu sempre me dei muito bem com os meus pais, e eles sempre se deram muito bem entre eles, eu fazia aquele a dia-a-dia comum de filho de pais divorciados. O meu pai morava em Santo André e a minha mãe é que foi um bocado trocando de cidade onde morava”, explicou. Quase como um nómada, Sambado conta que, na altura, “andava a saltar de um lado para o outro” e, por isso, “nunca se sentira muito estável”. Mas entre viagens, houve tempo para refletir e aprofundar certos sentimentos importantes para a sua escrita, como, por exemplo, a chegada:

Gosto muito de chegar, porque a sensação de chegada parece que cria uma oportunidade para ir a algum lado.

Aos 19 anos, veio para Lisboa e tudo mudou. Estudou teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema, aprendeu a produzir com o curso de Som I da Restart, encontrou amizades e amor, e, por sua vez, entrou com naturalidade e carinho nos círculos da malta da música – alguns deles da Cafetra, da Maternidade, da Gentle Records, da Flor Caveira, da Spring Toast e afins. Todos eles influentes à sua maneira, o talento de Sambado levou-o a produzir e a misturar discos, como o Cara d’Anjo (2015) de Luís Severo, e a tocar nos Cochaise e nos Chibazqui. Desde então, de projeto em projeto, de participação em participação, que nunca mais saiu de Lisboa – agora, ir lá para fora será “só para passear”.

“Agora ‘tou-me a começar a sentir mais em casa e tenho vontade e necessidade de viajar mas pela vontade do passeio em si, de ir a um sítio sabendo que, ao voltar, tenho casa. Que é uma coisa que antes não me acontecia”, explica.

Agora, com mais barba, cabelo e verniz nas unhas, Filipe faz discos rodeado por amigos que, por acaso, alguns deles, também são músicos. E a respetiva influência é inevitável: “Eu ligo muito aquilo que me é próximo.Há coisas que não sendo tanto do meu espectro sonoro, o trabalho que a Cuca Monga está a fazer também é muito interessante, há a malta toda aqui do free jazz, a malta da Caveira. Acabamos por nos conhecer a todos e acabamos por nos apessoar e apropriar daquilo que os outros fazem”, explica.

Mas Vida Salgada, aos contrário dos seus EPs, foi um caminho que trilhou sozinho – ou, pelo menos, no que toca à gravação. Tocou os instrumentos todos, à exceção de uma ou outra faixa – “convidei alguns ou por ser difícil ou porque estava preso na altura”. Entre as ajudas, estão Alek Rein, que tocou uma guitarra em “Estou Confuso”, e o Luís Barros, que é o baterista de Alek Rein. Além disso, Manuel Lourenço, a.k.a “A Primeira Dama”, gravou várias teclas e a Teresa Calcutá, dos Mighty Sands, cantou umas vozes.

No que toca à sonoridade do disco, Beatles, Leonard Cohen e Beach Boys foram as duas grandes referências de Filipe Sambado para a construção do disco. Apesar de tudo, o supracitado Alek Rain considera este disco “muito prog”. De facto, uma coisa é certa: há uma amalgama de influencias que dão a Sambado muita versatilidade ao rock que pratica.

“Houve coisas que fui ouvindo entre o Ups… fiz isto outra vez (2014) e este disco, por exemplo Cocteau Twins. Era uma coisa que já conhecia mas que comecei a aprofundar um bocado mais. E aquele lado meio onírico da dream pop que eles fazem…Depois mais tarde comecei a ouvir o Connan Mockasin, também com aquelas guitarras com muito pitch, muitos coros nas guitarras e mesmo na voz, também. E foi para tentar criar um espectro sonoro. Depois também há um lado muito brasileiro e um lado muito africano, na música que eu ouvia mais novo. E esse lado de beat afro-latino e mesmo de ritmos mais urbanos — eu acho muita piada à techno, também — deu-me sempre uma vontade de tentar fazer uma música que fosse dançável, mas em contradição. Tás a dançar em contradição, parece que te dói um bocado tares a dançar e eu queria… já andava a tentar fazer isto (…) Acho que a “Roda a garrafa” dá para dançar bem, essa manda uma cena assim meio dancehall.”

Num futuro próximo? Dar uns concertos para ganhar um dinheiro – “seria tão fixe fazer disto vida”, desabafa -, fazer canções e gravar um novo disco em banda com os Acompanhantes de Luxo (Alexandre Rendeiro, Adriano Fernandes, Manel Lourenço, Luís Barros). Num futuro longínquo? “Gostava de fazer um disco tão bom como o Tusk, dos Fleetwood Mac”, respondeu Sambado, sem hesitar. E, por fim, mostrar as suas canções em todos os cantos do mundo, “do Brasil a Africa”. “Quero tocar para muita gente, quero poder mostrar o que faço”, explica.

Mas a partir de agora, e cada vez mais, a vida de Filipe Sambado augura ser cada vez menos insossa. Apesar de ser, na sua opinião, “uma pessoa muito sensível”, Sambado conseguiu, acima de tudo, libertar-se do que não faz falta. Aliás, a libertação de Sambado passa pela exaltação do essencial: “a moda”, tal como se ouve na canção, não é crucial para a felicidade, mas “beijos sem saber” fazem toda a diferença. “Sim, tu tentas aperaltar-te, pintas as unhas e pões uma malha…ya, eu até me posso pôr bonito, mas o sofrimento continua, continua cá”, conclui Sambado, explicando a “piada venenosa” inerente a uma canção do novo disco, “Moda”. Mas, tudo isto, sem dramas:

A ideia é: quando isto acabar, não deves ficar à espera que volte. Deves continuar a andar.

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