Ouvir Três Anos de Escorpião em Touro, o mais recente disco de Filipe Sambado, é observar uma radiografia da sua criadora. As canções partilham os anseios, vontades e confissões de uma artista que se apresenta desenroupada frente ao público.
Só o título do álbum, Três Anos de Escorpião em Touro, muito nos dá para discorrer. Segundo Filipe Sambado a escolha do nome deriva da ligação dos “elementos do zodíaco constituintes do seu mapa astral”, pelo que percebemos que a artista acaba por atribuir a gestão do seu arbítrio “à força gravitacional de um conjunto de astros do sistema solar”. Esta é uma linha presente não só no nome como também na estética do disco, mas mais à frente falaremos sobre isso.
Este é o quarto longa duração de Sambado e é impossível ouvi-lo sem perceber que a personalidade da artista foi reconstruída entre Revezo, de 2020, e o álbum que hoje é lançado. Nos três anos que o disco demorou a ser gravado, Sambado passou por uma reafirmação género, nasceu a sua filha, e outras circunstâncias “trouxeram consigo um confronto com a identidade”, como admite a própria.
A canção que mais revela esta transformação será talvez “Talha Dourada”, a segunda faixa do disco e também o segundo single a ser apresentado (desde junho que alguns temas nos têm sido mostrados). Segundo a artista, é “uma canção sobre libertação, a luta contra as ‘cordas no pescoço” e a frase “Sou mais eu quando não tenho medo de ser” entoa como um lema para todos aqueles que se reinventam e revoltam ao aceitar as suas idiossincrasias. A temática do “eu” discorre, depois, pelo disco inteiro, como, por exemplo, nas canções “Mania” e “Choro da Rouca”.
Entremeadas, algumas canções, parecem transportar-nos para a infância e lembranças já distantes, talvez numa tentativa de conciliação ou de repor harmonia naquelas recordações. São disso exemplo as faixas “Frasco de Vidro” (“o frasco de vidro onde guardavas as bolachas daquelas roscas de manteiga”), ou “Hecatombe”. Já a curta “Coro d’Enby” remete para uma cantiga infantil, onde se prega um dos valores mais universais (e, porém, controversos?), o de sermos quem nós quisermos ser.

Filipe Sambado tem um ou vários destinatários nas canções de todo o disco e torna-se claro que, para além de um disco centrado na artista, tem também mensagens que, provavelmente, instavam por ser libertadas.
Apesar de acreditar que a beleza deste disco reside sobretudo na sua lírica, musicalmente, Três Anos de Escorpião em Touro parece ser mais atrevido que os seus antecessores. Este disco assume-se na electrónica, com recurso a sintetizadores, distorções, e auto-tune, seguindo uma onda Hyperpop, mas sem deixar de parte as clássicas guitarras eléctricas, os instrumentos tradicionais, como flauta transversal e violoncelo, alguns sons tradicionais portugueses e até beatbox.
O disco tem a produção de Filipe Sambado, Bejaflor e Rodrigo Castaño e conta ainda com algumas participações especiais, tanto nas vozes como nos instrumentos, como é o caso de Conan Osiris no tema “Caderninho”, ou Chinaskee na percursão da canção “Hybris”.
É ainda impossível falar deste álbum e não mencionar a sua estética e a importância visual que lhe é atribuída, quer pela sua capa, quer pelo álbum visual que acompanhou o lançamento dos cinco singles. Os telediscos tiveram realização de Martim Braz Teixeira, Ricardo Branco, Diego Bragà e Miguel Afonso Carranca e da própria Filipe Sambado. São vídeos de um cuidado extremo, onde a imagem não é só um complemento da música, mas também parte integrante. Cada um tem uma história e uma referência astrológica, o que reforça a influência dos astros nas canções e no trabalho de Sambado. Por exemplo, o primeiro, lançado em 16 junho de 2023, “Mau Olhado”, apresenta-se como Escorpião – Ascendente, Saturno e Úrano na 1ª casa e Plutão na 12ª. Não conseguimos também deixar de reparar na atmosfera azul e cor-de-rosa presente na plástica dos vídeos, muito em consonância com a identidade não-binária da artista.
Acreditamos que este é um dos discos do ano, pela sua irreverência e mescla musical, que explora as possibilidades de experimentar com os extremos do som, pela sua cuidada imagem conceptual, e, sobretudo, por ser uma espécie de carta aberta escrita por alguém cuja alma e sensibilidade mais parecem não pertencer a este mundo.
Este texto teve o apoio e a colaboração de Ana Catarina Tiago.