Despedidas são sempre difíceis. Quando são definitivas, pior ainda. Mas é possível enfrentá-las com relativa leveza e deste choque sairmos com um sorriso. É isso que Heartleap é: um adeus triste (por ser o que é), mas aconchegante (por aquilo que nos traz).
Pouco antes do seu lançamento, Heartleap – cujo nome é uma adaptação de “Hart’s Leap”, quadro da filha de Bunyan (Whyn Lewis) que é, também, capa do álbum – foi anunciado como o último álbum de Vashti Bunyan. Essa notícia, de certa forma, não surpreendeu – afinal, o seu álbum anterior datava de há 9 anos e Just Another Diamond Day fazia por essa altura 44 anos – mas entristeceu. Três álbuns desde 1970 até hoje tornam esta senhora quase num mito, mas sobretudo num exemplo: trata-se de alguém que escolheu apenas fazer música quando considerou ter algo a dizer, um gesto que em si é bastante respeitável.
O processo de escrita e composição, neste álbum, foi algo diferente dos outros. Segundo a própria, Vashti quis investir tempo a construir, sem pressas e com as “limitações” que tem (só saber tocar piano com uma mão, por exemplo), as melodias que ouvia na sua cabeça, tentando conseguir a tradução mais fiel possível dessas ideias e fazendo-o maioritariamente sozinha (salvo pontuais contribuições de Devendra Banhart, Andy Cabic e outros). Tendo isto em conta, este é, possivelmente, o álbum mais honesto da cantautora inglesa. É aquilo que lhe vai dentro na sua forma mais pura. E esta pureza revela-se num som brilhante e cristalino, quase frágil, mas seguro de si, e que nos transporta para outros lugares e outros tempos.
Essa viagem começa no dedilhar límpido como água de “Across the Water”. Suportada por uma instrumentação sempre minimalista, na letra sobressai um tema que se torna um recorrente em Heartleap – a morte e o fim, o caminho feito até esse momento e o confronto com ele. Nesta canção, a inglesa canta “Lived on wit, got away with it / Hummed a universal tune / Found a thread away in the head / Followed it over the moon / Every day is every day / One foot in front of the other / Learn to fall with the grace of it all / As stones skip across the water.” Logo a seguir, na sonhadora “Holy Smoke”, Vashti entoa “(…) but do I want to be like trees / Who stand round in freezing fog just waiting / For the spring to come for me? / Oh no”, negação que ouvimos as vozes suaves de Devendra Banhart e Andy Cabic a repetir como um mantra.
Depois, a cantautora faz uma homenagem às mães, em especial à sua (é incluída uma foto da Sra. Bunyan no livrete que acompanha o disco; as semelhanças entre mãe e filha são inequívocas), com a nostálgica canção “Mother”, cuja ambiência remete para e poderia ser tirada (de resto, como a foto) de um filme francês dos anos 30.
Já tinha sido referido o potencial transportador das músicas neste álbum. De facto, as guitarras delicadamente dedilhadas, com um som claro como lagos escondidos em montanhas, que muitas vezes se sobrepõem rendendo qualquer um à beleza desta troca de palavras (leia-se notas) musicais, os pianos e sintetizadores celestes ou ainda a beleza minimal da secção de cordas (ela está lá, escondida entre a reverberação) juntam-se em Heartleap para induzir um estado onírico muito próprio. Por exemplo, em “Shell” e “Jellyfish” (em que uma mulher que nada com um vestido azul é confundida com uma caravela-portuguesa pelo seu amado) ouvimos praias e o bater das ondas, em “Blue Shed” cheiramos a salitre impregnada nas ripas de madeira da nossa pequena cabana junto à duna; mas em “The Boy”, curta e triste, “Gunpowder”, alegre e inocente, e “Here”, soturna e misteriosa, é para prados verdejantes, colinas e florestas que somos transportados, onde o vento sopra fazendo a relva e as outras plantas ondular, em que o ar fresco nos enche os pulmões e os sons dos animais ecoam nos nossos ouvidos.
Nesta melancolia-alegria muito britânica, acaba por ser o entrelaçar das notas dos vários instrumentos com a arrepiante voz quase sussurrada de Vashti Bunyan que cria este estado de sonho acordado tão palpável e que culmina na serena “Heartleap”, imensamente emotiva, mas, ainda assim, contida, como o regresso a uma casa que nunca verdadeiramente se deixou.