O nervo que se ouve em Ty Segall é um farol que serve de contraponto ao rock amorfo, pastoso e apaziguado que parece ter-se instalado e secado (quase) tudo à sua volta.
De onde é que vimos? O que é que estamos aqui a fazer? Para onde é que vamos? E porque raio é que o rock and roll morreu? As primeiras três perguntas são de sempre (metaforicamente correcto, historicamente não tanto – mas bom, continuemos), a última parece ter-se vindo a impor na discussão dos melómanos assim-assim – aquele grupo de pessoas (em que me incluo) que gosta muito de música, sim senhor, mas que não passa o dia a percorrer a Internet e os catálogos mais obscuros das editoras mais obscuras à procura da próxima-grande-cena-de-que-ninguém-vai-ouvir-falar-pelo-menos-nas-próximas-décadas.
A questão não surgirá por acaso, antes das mutações que o género, pelo menos na sua relação com a indústria, tem sofrido. Daí que, volta e meia, a pergunta nos invada: é ainda possível encontrar rock bom, feito com honestidade, com todo o lado diabólico, subversivo e rebelde que sempre teve, mas transformado em grandes canções, que nos atinjam como um desfibrilhador? Ou, por outro lado, é possível hoje encontrar rock que não seja indie (falo do género, não do indie como marginalidade), hiper-produzido, pastoso e balofo, pensado para acompanhar tranquilamente uma cerveja ou, quando mais furibundo (até vamos receber os Foo Fighters este Verão) para servir de banda sonora a um desafio hedonista assim-assim?
É possível, claro, mas não é fácil. E, desses focos de resistência (a uma tendência que, com bons e maus intérpretes, parece ter secado tudo à sua volta) Ty Segall será seguramente um dos grandes embaixadores, porventura (arguably, dir-se-ia nessa – musicalmente – mítica Califórnia que lhe serviu de berço) o maior. A sua esparsa discografia – explicada pela capacidade de trabalho do homem, que parece fazer discos como quem faz o IRS (pelo menos todos os anos, portanto, e servindo por vezes de contabilista à conta de outrem para somar ao catálogo) – comprova-o. Há anos que Ty Segall é o farol que serve de contraponto ao som do sistema (o som apaziguado, bem-disposto e, quando político – em alturas difíceis como esta – tão aborrecido, consensual e anti-revolucionário que parece impossível ninguém se rir do esforço do sistema para corrigir a pose). Mas talvez tenha sido a partir de Twins (de 2012) que de rapaz muitíssimo recomendável virou referência – pelo menos da resistência, acrescente-se, para não cristalizar e porque provavelmente ele rir-se-ia do trono.
A partir daí, o caminho fez-se maior: Sleeper, do ano seguinte, mostrar-nos-ia a sua versatilidade e capacidade de fazer grandes canções noutro registo (mais íntimo mas não totalmente – e ainda bem – apaziguado). Manipulator, a sua obra-prima (parece-nos), viria logo a seguir; depois Emotional Mugger, o ano passado, que já nos pareceu um álbum menor; e, a abrir 2017, este disco homónimo, 36 minutos de rock grandioso, não grandiloquente, capaz de agitar as águas e revolver a maré como só ele sabe.
A abrir, toda uma declaração de intenções: Break a Guitar e aqueles instrumentos tocados em fúria, garage-rock em ebulição a beber do punk e do blues eléctrico mais cósmico que se pode imaginar, até surgir a voz, cada vez a dominar mais a arte da cantoria, a dizer-nos que “parece que vai chover” – pelo menos do lado de cá. Vamos prosseguindo, com os riffs a tomarem-nos a cabeça de assalto, as variações no tom das canções a fazerem-nos perceber que, sim senhor, Ty Segall faz álbuns, não conjuntos de temas, e à terceira faixa novo ponto alto: Warm Hands (Freedom Return), longuíssima (dez minutos e tal) e aprazível viagem pelo indecifrável mundo de Ty (e o glam, o punk e o hard-heavy-metal-rock, ou lá o que for, misturados, que aqui não há muros).
Pausa para acalmar o ritmo com a belíssima (mas ácida, forma poética de mandar todos os sonsos virar a má-língua para o espelho) Talkin’, numa incursão pelo folk-rock que interessa, com a certeza de que o Bob Dylan de certos tempos apreciaria isto. Volta-se ao caldeirão rock a ferver, leva-se com uma muralha de som no vermelho em Thank You Mr. K, espalha-se psicadelismo reinventor das lições de Syd Barrett em Papers e ouve-se uma canção rock com tudo no sítio em Take Care (To Comb Your Hair), para que logo a seguir tudo feche em beleza.
Tudo somado, o novo disco de Ty Segall não reinventa a roda, não caminha por águas especialmente exploratórias e não traz particular surpresa ao que já lhe conhecíamos – mas é esplêndido e é mais um passo firme que confirma que muita da honestidade, clarividência e maturidade (os seus álbuns são, hoje, um exercício mais aprimorado e conseguido, mas com todos os ingredientes iniciais que o notabilizaram) do rock americano de hoje lhe pertence. Agora é só voltar ao início, repetir e ouvir novamente por mais uns meses, até que Ty Segall regresse para nos trocar as voltas mais uma vez. Dizia Herberto Hélder que uma obra de arte, para ser obra de arte, tinha de ter inferno. De Ty Segall, já com o silêncio a impor-se, ainda ouvimos as chamas.