Altar é o disco mais arrojado dos The Gift desde Film, de 2001. Brian Eno ajuda, mas o fundamental está nos alcobacenses: um renovado sentido de experimentação aliado ao desenho de superlativas canções.
Em 2001, Nuno Gonçalves – compositor e cérebro maior dos The Gift – dá um autógrafo numa edição do álbum de então: “Este é o Film das nossas vidas”, escreve o músico, longe de, à época, imaginar os 15 anos que se seguiriam. De lá para cá, quase tudo aconteceu ao grupo: ganharam prémios nacionais e internacionais, consolidaram uma carreira, geraram amores, algum ódio ainda por justificar, e cresceram. “Fácil de Entender” e “Primavera”, nas suas versões mais radiofónicas e menos despidas, trouxeram os The Gift para um mediatismo até então pouco conhecido – o projeto Amália Hoje, ali pelo meio, com Nuno Gonçalves e Sónia Tavares a repartirem protagonismo com Paulo Praça e Fernando Ribeiro, foi também inegável potenciador de plateias e novos ouvidos.
De Vinyl (a estreia em álbum, em 1998) e Film, já pouco parecia restar dos The Gift nos últimos anos. AM/FM, em 2004, foi a ponte para a segunda década de vida da banda, onde Explode e Primavera, editados com menos de um ano de diferença, apresentaram um grupo mais elétrico, primeiro, e clássico, segundo – mas com menos sintetizadores e alguns dos elementos que nos tomaram o coração no virar do milénio, naqueles irrepetíveis dois primeiros álbuns.
Entre 2014 e 2016 a banda foi celebrando os 20 anos de carreira: houve um álbum de singles, concertos de celebração, um livro, edições especiais, um filme, tudo o que um fã de sempre e um ocasional melómano de passagem têm direito. Pelo meio, contudo, iam saindo umas notícias que deixavam no ar coisa boa: Brian Eno – sim, o mítico – tinha gostado da banda, aparentemente ia gravar com os The Gift, o quê, ninguém sabia, para quando, mistério total.
Já tínhamos visto tudo nos The Gift. Concertos pequenos e a explosão de um fenómeno – da memória do escriba não descola uma primeira parte para os The Divine Comedy, no Centro Cultural de Belém, com Vinyl acabado de editar; uma banda rock quase para estádios, como foram os The Gift de Explode, com três guitarras em palco a superar não raras vezes os devaneios (elogio) eletrónicos de Nuno Gonçalves; em comum ao longo dos anos, uma vocalista ímpar, amada ou odiada, mas certamente única no panorama pop/rock português.
Eis-nos em 2017 perante Altar, o trabalho produzido por Eno – sim, esse, caramba! – e misturado por Flood. São dez temas que nos devolvem os The Gift mais experimentais e na procura da perfeição que aprendemos a amar e nos esquecemos vezes demais de acarinhar. São dez temas onde não há uma canção em português, onde tudo parece de difícil absorção, de demorara digestão, mas a que os adeptos e conhecedores de sempre não darão mais que meia dúzia de audições para reconhecer uma renovada vitalidade. Brian Eno – o génio – certamente ajudou, e a ele não será alheia a entrada de elementos até aqui alheios aos The Gift: “Big Fish” tem uma presença eletrónica empolgante como já “645” ou “RGB” tinham, mas pisca os dois olhos ao soul e a à funk – é um tema imenso e o mais imediato dos três singles já revelados.
“Love Without Violins”, a primeira amostra, conhecida há já um simpático número de meses, é a única com a voz de Eno a namorar cordas vocais de Sónia Tavares para um tema a várias velocidades mas bem ancorado num apurado gosto pop – imediato e eficaz, mas de absorção mais saborosa com o passar das escutas. E que dizer da sequência formada por “Vitral” e “Malifest”? A primeira, lenta, arranca com uma viola, passa por outro tipo de cordas (os violinos, ainda e sempre presentes nos The Gift, embora menos vezes com o sentido épico de outros tempos), tem um coro, e é talvez a melhor canção do álbum. Tem tudo o que são os The Gift de 2017 e é uma canção que só podia ser feita com tantos discos e carreira para trás. “Malifest”, logo depois, é rápida, direta, abrasiva: tem um serpentear de uma guitarra elétrica ao longo dos seus quatro minutos que cativa, mas é na sobreposição de vozes que a vitória se constrói. Oh yeah, the wait is gone, cantam – e bem – Sónia e Nuno.
Os quatro temas seguintes, os finais de Altar, são um abrandar de velocidade mas não de intensidade e drama – há, como sempre houve nos The Gift, o fazer de canções pop certeiras e redondas, mas nunca é descurada uma dimensão mais profunda. Não por acaso, e a final “What If” bem o atesta, há uma palavra que marca os The Gift de 2017: celebração. Sem esquecer ritos religiosos, o que os quatro de Alcobaça celebram é o sonho pop em que as suas vidas se tornaram. O sonho de gravar com Brian Eno – sim, o dos Roxy Music e que gravou para os Devo, Talking Heads ou U2! -, da procura da reinvenção, da introdução de novos elementos, mas do estabelecer absoluto e convicto de uma identidade muito própria.
Os The Gift de 2017 já não precisam de provar nada a ninguém, a não ser a eles próprios, e isso é meio caminho andado para uma banda permanecer fresca e válida. O resto, é deixar as canções falar. E Altar está cheio de boas canções. Pode até não ser o filme da vida destes músicos, mas é certamente o primeiro capítulo de uma nova vida dos alcobacenses. Venham as sequelas, mas celebremos o presente.