Ty Segall é um dos mais prolíficos músicos modernos. Desde 2008 a quantidade de bandas em que se encontra, e com que colaborou, e a quantidade de discos lançados em nome próprio são muito numerosas. Manipulator, lançado este ano, tem sido considerado (ainda que de forma não-unânime) o seu melhor disco. E se toda a sua discografia desde Melted (2010) é muito relevante, este disco parece-me de facto ser a sua obra-prima e um sério candidato a melhor disco do ano. Depois de um Sleeper (2013) mais contido e emocional, Ty Segall voltou este ano aos discos abrasivos, fervilhantes e com o volume bem alto. Ele próprio o admitiu recentemente em entrevista: por um lado que há essa maior intensidade («It was really great for this one to kind of play really loud music again») e por outro que a exposição narrativa é menor («None of the music is about me. It’s about things that happened to me, or to people in my life, but never a specific song from my perspective»).
Contudo este regresso é mais do que isso: o rock abrasivo já lá estava, mas assim nunca o tínhamos visto. Manipulator não é blues eléctrico, não é stoner rock, não é garage rock, não é psych rock ou heavy psych nem é glam rock: tudo isto cá está, e o próprio Ty Segall confirma que é algo consciente: «To me, rock ‘n’ roll is rock ‘n’ roll. To me, Funkadelic and Metallica exist in the same world. So you should be able to drop them both when you make a record.»
O músico americano referiu, recentemente, ter-se inspirado em discos clássicos como Electric Ladyland (Jimi Hendrix) e The Beatles (The Beatles) – ambos álbuns duplos. Quanto ao primeiro, «Yer Blues» é canção que nos vem à cabeça; mas é remontando a canções de outros discos («Ski-ing», presente em Wonderwall Music de George Harrison; e «Well, Well Well», dos Plastic Ono Band) que, creio, o paralelismo se torna mais eficaz. Jimi Hendrix, porém, também passou por aqui. A guitarra eléctrica levada ao limite, o volume alto e os solos capazes de nos extasiar recordam-nos Jimi; e também aqui a guitarra eléctrica assume esse peso central, transformador, subversivo e pesado sobre o qual todo o disco se ancora. A par de Drop, dos Thee Oh Sees, Manipulator é provavelmente o disco rock mais feroz e com riffs mais desafiantes do ano.
Uma das críticas feitas ao disco é a de que este é demasiado longo, acabando por se repetir. É possível, claro, mas problema só será para alguns: este álbum duplo de Ty Segall é estimulador do início ao fim, e a coerência rítmica tanto pode ser apontada de forma crítica como de forma elogiosa. A voz narcótica de Ty Segall, muito pouco preocupada com afinações, contrasta sempre bem com o peso, a distorção e a ferocidade instrumental, equilibrando-a. É difícil escolher canções, dada a qualidade de todas – nota-se que Ty Segall passou mais tempo para o fazer do que qualquer outro álbum da sua discografia. Mas o tema-título será facilmente uma das melhores canções de abertura de disco dos últimos anos: começa com um tom sério (por alguma razão recorda-me igrejas) que não parece antecipar o que se segue: a voz de Segall que se vai tornando mais arrastada, a guitarra a soar excelente (começa o primeiro impulso, ainda meio tímido, para o headbanging). «Tall Man Skinny Lady» começa com groove e é bem mais instrumental: há ali a meio uma distorção e uma guitarra suja a ser tocada como se não houvesse amanhã; a dado momento ouve-se uma sequência de acordes que recorda Hendrix. «The Singer» começa mais arrastada e suave, quase como num sonho (os «laaas» ajudam a criar essa envolvência), até surgir a guitarra num solo bestial. Em «It’s Over», sempre com a guitarra como eixo central, volta a aumentar-se o ritmo e temos um refrão mais à Segall, com um «it’s over» repetido vezes atrás de vezes, suportado pelo peso dos instrumentos. «Feel» tem um dos melhores solos da década (e há também por lá um solo de bateria). Enfim, poderia continuar com todas as outras canções (que são, como nos grandes discos, todas elas merecedoras de destaque).
Acrescentarei só «The Connection Man», canção com um ambiente mais tenso / nervoso que a dado momento nos recorda os Thee Oh Sees; «Susie Thumb», outra onde a guitarra é tocada com uma mestria e um vigor incrível; e «The Crawler», que é seguramente heavy-qualquer-coisa: enfim, deixemos os rótulos e reajamos a este esgotante «mandar a casa abaixo», musicalmente falando.
Ty Segall tocou no LUX Frágil no passado dia 25 de Outubro. E se os discos anteriores já tinham uma energia tremenda, com Manipulator crescia a certeza de que provavelmente se iria assistir a um concerto tremendo. Não estávamos errados. Pegou fogo…