Se com os Sonic Youth a estrutura das músicas frequentemente andava em torno da ideia Verse Chorus NOISE Verse, terminando mais ou menos como começou, Thurston Moore agora prefere estruturar as músicas em segmentos de uma viagem que não precisa de retornar à origem.
Há um aroma que não dá para perceber se fede ou perfuma o ar no projecto de 2016 do Thurston Moore, The Heretics, como que sublinhando um certo estatuto burguês do músico americano no panorama da música rock. Os que (não eu) entendiam os Sonic Youth como Rock a puxar para o intelectualóide, arriscam o vómito com os Heréticos. Trata-se de uma obra com textos do caralhete declamados em francês pelo inacreditavelmente mavioso Anne-James Chaton, e pelo próprio Moore, com várias referências ao mundo da literatura e cinema, acompanhados de acordes simples e repetitivos. Caem, de vez em quando, uns loops marados que alguém menos sensível diria serem a armar ao pingarelho. À partida eu refuto essa ideia, mastigando-a apenas em segredo. No fundo, The Heretics é um projecto que musicalmente me deixa algo a desejar, a declamação causando efectivamente uma certa irritação, uma comichão que não sabemos se sabe bem ou não, mas apesar disso não deixa de ser interessante, bem mais audível do que a maior parte da música que se anda para aí a fazer no nauseabundo universo do indie-rock.
Eu tinha gostado bastante do The Best Day, mas ficou sempre a ideia de ser um álbum que nasceu das improvisações do costume do Thurston e talvez menos de song writing ponderada; uma demasiado óbvia extensão do que já tinha feito com os SY, neste caso com novos músicos, Debbie Googe e James Sedwards, que, sendo por um lado excelentes, por outro não parecem muito dispostos a soltar as rédeas criativas.
Ora, apesar de estes dois trabalhos que aqui referi serem trabalhos que sim senhor enfim valem a pena, penso poder dizer-se que nenhum nos poderia ter feito mudar de vida mesmo que estivéssemos na mais espessa das merdas. Em suma, não conseguimos afastar totalmente a ideia de uma certa.. preguiça, aquela preguiça burguesa de quem nada tem a provar e quer é curtir; um.. ok, tá bom.
Nada de errado nisso.
Mas digamos pois que foi com alguma apreensão, uma espécie de preparação interior para a desilusão, que comecei a ouvir o Rock N Roll Consciousness.
O primeiro acorde da primeira música do álbum, “Exalted”, pareceu confirmar o sentimento. Imediatamente trouxe a suspeita de que fora mantida a afinação das cordas dos últimos anos – CGDGCD (já agora adianto, com petulância de medíocre guitarrista domingueiro, que compreender a afinação das cordas das guitarras dos Sonic Youth é compreender Sonic Youth). Mas trata-se então de um acorde típico de Thurston Moore, bonito, ligeiramente dissonante, de final aberto (um par de cordas a soltar notas uníssonas), massajado com a ponta da palheta em género dedilhado, e em repeat, enquanto o Steve Shelley trauteia uns pratos em total aborrecimento. Nada de novo aqui, excepto talvez a repetição mais longa do que o costume. Demasiado fácil, murmurei. Seguem-se finalmente outros acordes, construindo-se uma frase que parece que já termos ouvido algures na vasta discografia do Moore, e que entram em loop. Engulo em seco, constatando que o ritmo das notas parece estar inscrito no ADN das guitarras do Thurston desde os tempos de “Teenage Riot”. Depois surge um riff que o americano começou a explorar com alguma frequência a partir do “Rain on Tin”, modificando-o aqui ou ali. Comecei a pensar na angústia que deve ser querer produzir tanta música procurando originalidade, coisas novas para dizer. Frequentemente observamos que a criatividade tem limite e quase todos os artistas chegam a um pico, frequentemente na primeira década de produção. Depois é a descer. E mesmo assim não nos esqueçamos que poucos músicos têm sido tão prolíficos como o ex-sonic youth e estou-lhe pessoalmente grato.
Mas eis que chega uma espécie de um solo declamante com uma distorção bem mais old school do que a do imaginário de SY. É aqui que a coisa começa a mudar. Rock N Roll Consciousness. Após umas deambulações espaciais que podiam pertencer aos anos setenta, caiem que nem trovões uns power chords do cacete e a coisa fica tipo Drone metal, sem quaisquer ânsias de suavização, culminando numa muralha de ruído bastante comestível. Muito poderoso, inesperado e ainda assim em harmonia, como que a fazer pouco dos que, como eu, temiam que isto iria ser mais do mesmo.
Reinvigorados pelo Metal, e ainda na mesma faixa, podemos então regressar prazerosamente à estética mooriana, agora acompanhada de poesia algo místico-urbana cool do costume (letras aqui em colaboração com o poeta londrino transsexual Radio Radieux). “She’s the future / and the profethess” – não fazemos ideia do que isto possa querer dizer, mas lembramo-nos certamente de “Eric Trip” de Lee Ranaldo – “she thinks she’s a goddess, she says she talks to the spirits”.
Apesar disso, algo de original parece acontecer. Identificam-se blocos (ou estrofes) de três, que se repetem num loop. O ajuntamento em torno de um número primo aproxima-nos bem mais da ideia de círculo – é sabido – , o que aqui confere um carácter mais meditativo. O mesmo agrupamento em três é verificável também naquela que acho ser a melhor música da obra – “Aphrodite” – tanto durante o verse como depois mais durante as deambulações dos guitarristas em torno do baixo de Googe. O elemento da repetição a fazer recordar os mais interessantes momentos do The Heretics e percebemos melhor a onda circular em que Moore se encontra. As músicas graciosamente a estenderem-se (entre 6 a 12 minutos) e o disco a prosseguir de maneira verdadeiramente entusiasmante.
De notar que se com os Sonic Youth a estrutura das músicas frequentemente andava em torno da ideia Verse Chorus NOISE Verse, terminando mais ou menos como começou, Thurston Moore a preferir agora (e já desde o The Best Day) estruturar as músicas em segmentos de uma viagem que não precisa de retornar à origem. Parece-me melhor assim, embora causem algumas saudades os diálogos com Lee Ranaldo. Como se, ao se tornar um song writer mais interessante, se tenha perdido alguma autonomia (ou paciência) para avacalhar.