Os Gorillaz surpreendem-nos com um falso disco de dança, que sabe afinal a apocalipse.
Sempre que aparece um novo disco com o selo Damon Albarn – e os Gorillaz são apenas uma das suas muitas testas de ferro-, mais patético fica o velho dilema “Blur ou Oasis, eis a questão”. Mas qual questão? Esteja Albarn nos Blur ou fora dele, num colectivo ou a solo, deitado ou a fazer o pino, o resultado é sempre um talento criativo fora do vulgar. Se insistem em medir o homem, e as suas bandas, façam-no ao menos com o devido sentido das proporções. Proponho Lennon & McCartney, Bowie, ou Morrissey & Marr como possíveis unidades de medida, e nunca o folião do Noel Gallagher, o melhor dos compinchas para uma noite de copos, mas de maneira nenhuma um talento à altura do ruço londrino. Senão, o que viria a seguir? Debater no parlamento se a condecoração vai para Mandela ou para Anselmo Ralph?
Terminado o desabafo, chafurdemos então no mistério de Humanz, o brilhante novo tomo da saga virtual Gorillaz. Comecemos pela sua diversidade de estilos musicais (hip-hop, ragga, tecno, RnB, neo-soul, o diabo a sete), que tem levado alguma imprensa apressada a considerá-lo como uma “mix tape caótica e desordenada”. Temos uma opinião diferente. O amor à música negra americana, as batidas de dança possantes e sintetizadas, e as vozes sempre quentes e rugosas, são transversais a todo o álbum, conferindo-lhe um inequívoco sentido de unidade. Não resistimos a repetir na íntegra a expressão “o amor à música negra americana”. Caríssimo ideólogo da britpop, as voltas que o mundo dá…
Segue-se a profusão de colaboradores, com alguns nomes conhecidos (Grace Jones, Benjamin Clementine, De La Soul) destacando-se no meio de uma enxurrada de ilustres desconhecidos (quem raio é, por exemplo, Peven Everett ?). De álbum para álbum, os Gorillaz têm sempre evoluído no sentido de uma menor participação vocal de Damon Albarn. Em Humanz, a discrição – e sentido de comunidade- é levada ao limite. Mas Albarn está sempre lá, na penumbra, puxando os fios das marionetas. Os fios certos.
Depois, e perdoem-me o palavrão, vem a radical des-Blur-ização de Humanz. A memória vai-se desvanecendo, mas o indie rock marcava ainda forte presença nos dois primeiros discos dos Gorillaz, onde alguns temas com guitarras ásperas não soariam deslocados num álbum dos Blur. Plastic Beach ensaia um corte com esse passado mas só Humanz leva essa política de terraplanagem até ao fim, extirpando, com um fervor messiânico, todo e qualquer vislumbre de instrumentação orgânica. Ouvindo o disco, temos a sensação de que Albarn não sabe sequer que instrumento é esse com o exótico nome de “guitarra”. Claro que os puristas do rock sairão indignados para a rua, de forquilhas e archotes na mão, queimando em praça pública o disco maldito. O que não deixará de ser bem-vindo. O projecto estético dos Gorillaz sempre assentou – e assentará – numa sadia provocação aos puristas do rock.
Mas o que torna realmente Humanz um objecto interessante – e complexo – é o facto de ser um falso disco de música de dança. Sim, meus amigos. O seu glamour electrónico é apenas uma fina película à superfície, que estala ao mais levíssimo raspar. É então que o seu âmago fúnebre e decadente se escancara, obsceno, para nós. Coros espectrais, progressões de acordes sinistras, vozes sofridas, atravessam todo o álbum, rasgando a sua máscara pop, como quem descobre, por debaixo da espessa maquilhagem de uma meretriz, uma pele bem mais flácida e engelhada do que desejaríamos.
Não há volta a dar. Humanz é um disco que tresanda a apocalipse. Quem já ouviu This is Hardcore dos Pulp, ou Fin de Siècle dos Divine Comedy, conhece bem este cheiro pútrido a fim do mundo. Quem liga menos a extravagâncias da música pop, basta ligar o telejornal para as silhuetas de Trump e de Marine Le Pen exalarem o mesmo odor a sangue e mofo. “Hallelujah Money”, gospel sórdido e decadente que quase encerra o disco, usa o mesmo perfume. É um jogo a duas vozes. De um lado, Benjamin Clementine, com a sua bonita voz de Nina Simone intencionalmente deformada, parodia Trump, numa apologia sabuja ao ódio e ao dinheiro. Do outro, a voz de Albarn, triste, desamparada, carregando toda a melancolia da humanidade, encolhendo os ombros…
Mas o complexo jogo de máscaras não acaba aqui. Humanz é também um falso disco de apocalipse. O mundo como o conhecemos pode estar a desmoronar-se, mas enquanto sobrar uma réstia de integridade, Albarn exorta-nos a dançarmos por entre os escombros. O manifesto é tornado explícito no tema que encerra o álbum: “porque, aconteça o que acontecer, teremos sempre o poder de nos amarmos”, canta Jenny Beth das Savages em “We Got the Power”.
Por mais naife que seja o tema, um ardiloso estratagema torna-o imune ao mais sulfúrico cinismo. Nele, Albarn e Gallagher cantam juntinhos, qual casal de namorados na praia ao pôr-do-sol. É aqui que o jogo de máscaras acaba. Se Albarn e Gallagher conseguem partilhar o mesmo metro cúbico sem se estrangularem uma única vez, então, tudo é mesmo possível, até a fé na humanidade.