Dois meninos do coro, dotados de vozes invejadas pela maioria dos anjos da Bíblia, que desceram à Terra para sarar as feridas dos nossos massacrados ouvidos, em constante modo mosh-pit.
Do presente turbilhão revivalista punk, repleto de sujas guitarradas e baterias colossais, capazes de apavorar os vários centros de sismologia à volta do mundo, com especial impacto nas placas britânicas, sobressaem os Lemon Twigs.
Todos os dias de manhã corre-me uma lágrima pela bochecha esquerda ao abrir, pleno de esperança, a janela do meu quarto e saber que acordei, mais uma vez, em Lisboa de 2023 – e não em Londres de 1973. Discutir com os nossos compinchas no intervalo do almoço os revolucionários sons de The Dark Side of the Moon, ainda frescos. Ver atuar os Kinks no Top of The Pops com dedicadas caras de frete. Gozar com o pessoal que ouve Fleetwood Mac, enquanto se compra, pela calada, uma compilação de Carpenters. Que bom deve ter sido viver esses áureos tempos, em que a música não passava apenas por um mísero um link à deriva numa conversa de “Whatsapp” e se amava fisicamente – e se sacrificava tempo para a amar. O que é que custava, ó cegonha que me trouxeste a este mundo, teres adiantado isto umas décadaszinhas?
Enfim. Felizmente, já não choro esta minha condição anacrónica sozinho. Apareceram-me dois cúmplices e talentosos ombros para afogar a irracional frustração que, em vez de lenços e gelado de marca branca – sempre muito eficazes, atenção -, trazem um “novo” álbum deliciosamente atemporal que tem tornado o irrisório desejo de um melómano alienado numa realidade menos distante.
Everything Harmony, como bem anuncia o título, oferece-nos cinquenta minutos de uma enternecedora e satisfatória gama de harmonias. Os “irmãos limão”, neste seu mais recente projeto, redescobrem novas atmosferas sonoras em torno de técnicas herdadas dos seus “avós” (Fleetwood Mac, Joni Mitchell, Simon, Garfunkel e companhias), devolvendo uma beleza chorada pelo mundo da música a uma distância de quase meio século.
É desde a primeira fração de nota que o álbum se revela um reconfortante alívio de chegada a casa após um dia de incessável tareia sonora. O ouvinte deixa que o som cristalino de um dedilhado acústico delicadamente desaperte o nó da sua gravata, enquanto a gravidade toma posse total do seu corpo com “When Winter Comes Around”. Fundido com o sofá, é atacado sem aviso, com abrupta graciosidade, por uma cortante voz angélica que se entrelaça delicadamente com as notas que vão escorregando da guitarra. Chega-se ao ponto de ser válido perguntar se não se colocou, por feliz lapso, os lados B de “Bridge Over Troubled Water”. Sim, apesar das numerosas “fontes musicais” a que os Lemon Twigs recorreram para enriquecer o seu talento e criatividade, Art Garfunkel e Paul Simon assumem esmagadora presença na bibliografia desta obra – com especial destaque na catarse vocal, totalmente “The Boxer”, que encerra o tema.
A segunda faixa, “In My Head”, vem relembrar a já conhecida versatilidade composicional do duo. Estes dois anjinhos, agora ligados aos amplificadores, soltam a sua melancolia com explosiva energia juvenil. Temas destes, mais animadotes, estão estrategicamente distribuídos pelo álbum de modo a evitar eventuais adormecimentos por parte de públicos desabituados ao chamado baladismo. No fundo, são composições de êxtase cujo efeito no ouvinte se assemelhará ao de uma lata de coca-cola de 33cl – isto é, arrebita q.b não desobedecendo ao mote, Everything Harmony.
“Corner of My Eye” é uma doce e peganhenta cantiga de amor, inspiradora de beijoqueirices, com uma produção, digamos, contemporânea, que se serve de uma mais diversificada repartição instrumental. “Olha lá, Zé, já que estamos numa de lamechices, despacha-se já tudo!” pensaram os dois irmãos, em cumplicidade telepática. “Aqui vai “Any Time of Day!”. Este quarto tema é uma necessária ode aos ostracizados reis do romance meloso, os Bee Gees, cuja reputação tem sido flagelada por foleiros bares de Santos a abusar das dóceis vozes destes lendários diapasões humanos. É com desavergonhada felicidade que saúdo o retorno do “orgulho falsetto”, e Barry Gibb não poderia estar mais satisfeito com esta sua descendência.
Sem cerimónia, são reabertos os portões da melancolia. “What You Were Doing” é talvez o tema mais “Lemon Twigs” de todo o álbum. Aqui é-nos apresentado o produto de um estilo em progressivo desenvolvimento desde 2016. Dificilmente se traçam objetivas entidades influentes ao longo da faixa, estando todas conjugadas numa sopa de sabor temporalmente indefinível. “I Don’t Belong To Me”, balada peculiar que transporta o ouvinte pelos confusos caminhos da angústia resignada da letra, dá continuidade a esta afirmação de individualidade. Na sua generalidade, a despretensão lírica do álbum compensa, e complementa, a sua estrondosa riqueza melódica, fornecendo-lhe aquilo que se podia definir como “máxima pureza emocional”.
Dito isto, “Every Day Is The Worst Day Of My Life” é o tema mais forte do conjunto. A repetição exasperada do título, guiada por uma intensa exibição vocal, abarca um sentimento inatingível por qualquer metáfora. As três faixas que se seguem, “What Happens To A Heart”, “Still It’s Not Enough” e “Born To Be Lonely”, como também a penúltima “Everything Harmony”, nada trazem de novo para além de uma habitual elegância instrumental e um ligeiro toque de orquestração barroca – saudando com carinho o avô Scott Walker.
A faixa que ainda justifica menção é “Ghost Run Free”. Farinha do mesmo saco de “In My Head”, mas confecionada numa receita com o dobro do açúcar. Esta injeção de adrenalina conta com límpidos arpeggios de guitarra elétrica, pujança na secção rítmica e uma libertadora performance vocal, que mais parece vir dos créditos de um “High School Musical”. (Convido todos a, durante a audição, atirar dossiês e cadernos para o ar como extáticos adolescentes americanos. Garanto-vos que aumenta de modo decisivo a vossa experiência auditiva).
O álbum encerra como começou. Em “New To Me”, pura canção de despedida, os Lemon Twigs, de olhos aguados, abanam o lenço enquanto os portões de um refúgio de memoráveis momentos melódicos se fecham, relutantes, ao som de uma guitarra deprimida (com potencial para levar o mais slacker fan de Sex Pistols à pura choraminguice Billy Joelesca).
Chega de pretensiosos experimentalismos, devolvam-nos uma beleza que ficou esquecida no tempo.
A música estava a precisar de uma pausa. Obrigado, queridos “irmãos limão”. Como se diria num programa da manhã: por agora, é adeus, mas que seja só um “até já”.
texto de Rodrigo Costa Santos