Nove canções que são nove trunfos. Um álbum histórico que é o embrião de outro ainda mais histórico. Um som imaginário que se tornou realidade, este Milton.
São sempre muitas e boas as surpresas quando voltamos aos discos das nossas vidas. É surpreendente, sobretudo pelo facto de os conhecermos tão bem. Mesmo assim, parece que nasce sempre algo de novo nesses momentos em que os escutamos umas vez mais, principalmente quando há muito não os colocávamos a tocar. Julgamos que sabemos rigorosamente tudo o que neles vamos encontrar, e há uma ou outra surpresa à nossa espera, uma vez mais. Nunca falha. Nós é que julgamos que esses nossos clássicos baixaram a guarda. Engano. Nunca baixam, exigindo de nós a mesma atenção de outrora, ou mais ainda. Ou seja, há neles uma vida que não cessa, por isso frutifica e vai ganhando outros contornos. No fundo, sempre lá estiveram, essas surpresas. Nós é que não conseguimos ouvir esses novos e fantásticos instantes, que desde a primeira data lá se encontram. É o milagre da música e de quem a escuta com a devida reverência! Foi o que aconteceu, de novo, com um álbum mágico e clássico. Um álbum desejado que há muito desejava ter em vinil, e que apenas agora, com a vaga de reedições que vão inundando o mercado discográfico, me chegou às mãos pela primeira vez.
Todo este intróito serve para apresentar Milton, o longa duração de Milton Nascimento saído em 1970. Tudo nele é histórico: canções, músicos, capa. Um regalo múltiplo para os nossos diferentes sentidos. O prazer de o ter agora a tocar, numa bonita edição de vinil laranja, compensa o desejo nunca satisfeito ao longo de décadas. Chegou a hora! Vamos lá aproveitar esse milagre de existência física e sonora.
O élepê abre com a icónica “Para Lennon e McCartney”, grito roqueiro de afirmação cultural, civilizacional e humana que vai, de certo modo, ao encontro das pretensões do que faziam, embora de forma muito diferente, os tropicalistas de serviço nesse já distante tempo. Mas, sobretudo, foca o que “vocês não sabem”, em referência a Lennon e McCartney: que ao mesmo tempo que a geração do Clube de Esquina idolatrava os Beatles, os pobres heróis de Liverpool eram ignorantes quanto à excelência da música que esse grupo de mineiros (e não só) faziam. É um belíssimo recado à famosa dupla inglesa, que apenas é citada no título da canção, um marco de afirmação e de consciência do soberbo universo musical de Milton e seus parceiros, que apenas pela sua localização geográfica na esfera onde habitamos, passavam por ela sem o reconhecimento global, coisa que tantas e tantas vezes acontece aos mais extraordinários génios. Os versos “Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber / Mas agora sou cowboy / Sou do ouro, eu sou vocês / Sou do mundo, sou Minas Gerais” dizem tudo. Que enorme canção! Como “Canto Latino”, que não poderia ficar esquecida.
Para que este texto não se arraste muito mais na sua dimensão, façamos apenas referencia a outros três ou quatro momentos de grande excelência. Ainda no Lado A de Milton, a extraordinária beleza de “Amigo, Amiga” merece destaque, assim como a superlativa “Clube de Esquina” e o seu “futuro que tenho nas mãos”. Versos premonitórios, esses. E estes também: “Janelas se abram ao negro do mundo lunar”. Enfim, outra obra-prima. No início do Lado B, a canção que mais vezes recordo na voz de Milton Nascimento, feita por Toninho Horta e Fernando Brant. Chama-se “Durango Kid” e é tão bela e tão boa que basta ouvi-la uma única vez para ficar para sempre em quem a escuta. Durango Kid foi um herói dos anos 40 (cinema e banda desenhada), que fez enorme sucesso no Brasil dos anos sessenta. Uma espécie de cowboy justiceiro, Robin Hood de coltes e pistolas, amigo dos fracos e dos oprimidos. Curiosamente, sua presença na música popular brasileira não se restringe apenas a esta canção. Raul Seixas, mago cowboy do rock brasileiro, também o cantou em “Cowboy Fora da Lei” e em “Anarkilópolis”, assim como também o fez Sérgio Sampaio” na histórica “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”. No entanto, “Durango Kid” é e será sempre imbatível!
Ainda no outro lado da rodela, há o incontornável “Pai Grande”. Singela mas intrinsecamente histórica, canção que é hino do povo negro, hino de todos os tempos humanos. Mais uma pérola sem idade, como sem idade é a nona e última faixa do disco, a eterna “A Felicidade”, de António Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. No entanto, e para além das composições referidas, todas as outras são de uma superlativa evidência musical. Todas, sem exceção. Para tanta inegável qualidade, a presença da banda Som Imaginário teve uma grande palavra a dizer. Músicos como Wagner Tiso, Zé Rodrix, Tavito, Robertinho Silva, Naná Vasconcelos e Lô Borges foram muito importantes na feitura de Milton.
Este foi um disco mágico a prenunciar outro, que viria dois anos depois, em 1972. A quarta faixa deste Miltonemprestou o seu nome ao duplo histórico que veio logo a seguir. Clube de Esquina teve aqui o seu mais do que certo embrião. E é também por isso que teremos sempre o dever de olhar com as devidas vénias para as nove faixas de Milton. Discaço absoluto!
Uma última nota para a capa de Milton. O desenho de Kélio Rodrigues, ilustrador de várias outras capas da MPB, apresenta-nos Milton Nascimento como se de um Rei Negro se tratasse, tornando-se das mais sagradas de toda a discografia do bom Bituca. Uma jóia a mais a embalar os diamantes contidos dentro.