Mesmo faltando a coesão sónica, propósito e direção de um álbum de estúdio, o sequenciamento desta colectânea é inteligente, um documento essencial na história da banda, fulcral para entender a sua evolução.
Cerrem as pálpebras.
Agora, olhem.
Muitos se encontraram no sítio – não fixo – que vêem.
Contraditório? Claro. Era lugar metafísico, mas atentem – era palpável! A divagação nas paisagens cegas de meandros mentais, os dois pés esquerdos arriscando a dança, a escuridão chamada casa, a lágrima no olho, a mão no peito, a letra urrada; estas faziam esse ermo dos olhos fechados a discoteca de todo o rabiscador-feito-poeta-lírico, romântico precoce, doente sem patologia, rebelde sem causa, rato de subúrbio, preso sem jaula – o adolescente.
Do ponto de encontro de milhares deles, esperar-se-ia algo senão um escape? Absortos agitavam-se ao som de The Cure, poses e vestes do vocalista emuladas, soçobrados pelo peso dos anos 80: bruxas governavam nações, a SIDA acontecia a todos, as guerras eram frias e o Marvin Gaye tinha morrido. Sobrava-lhes a voz de Robert Smith e o mundo alternativo da sua banda.
O âmago sempre foi central ao apelo das histórias de Smith: a ponderação e descrição vivida da reacção interior obtida face a eventos exasperantes, desesperantes, frustrantes, deprimentes, excitantes ou determinantes na 1ª pessoa. A empatia face às histórias do Sr. Smith – unicamente cantadas naquele tão adolescente pesar, consciente da dimensão das palavras, mestre da métrica como instrumento melódico e rítmico – é compreensível: olhando à sua volta, será que alguém pensaria que o Mundo empalidecia assim tanto face às histórias morosas do cantautor? “(…) I’m crying for yesterday/ and the tap drips/ drip drip drip drip drip drip drip…”, narra em “10:15 Saturday Night”. Das situações difíceis surge a identificação e o reconhecimento. “You know you’re always crying/ It’s just your part/ In the play for today.” Talvez não sejamos, então, muito diferentes das personagens do homem com olhos de gauxinim.
Compilação lançada em ’86 para comemorar 10 anos de existência dos Cure, Standing on a Beach (em alguns países titulada Staring at the Sea) abrange os singles lançados durante essa década. Alguns destes já figuravam na compilação Japanese Whispers de ’83, mas esta apresenta uma visão mais excitante, global e completa de tudo o que os Cure podem e podiam ser, apresentando-se como o lançamento mais esclarecedor quanto aos dotes musicais camaleónicos desta banda, para além do esquizofrenicamente díspar e genial Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me, de 1987.
Todo o gravitas emocional previamente descrito era propulsionado e expandido a níveis surreais pela música notável, aqui tão bem compilada e sequenciada numa retrospectiva bem elaborada dos tempos do post-punk austero de Three Imaginary Boys até ao virtuosismo pop de The Head On The Door. O singular em cada tema é a sua dimensão: pequenos mundos são criados em cada canção através das mais variadíssimas formas, conferindo-se a aptidão dos Cure para criar um universo só deles.
O álbum (em CD) está espiritualmente divido em três fases: a primeira, de “Killing an Arab” até “Play For Today”, mostra-nos a dimensão única que os Cure atribuíram ao post-punk com a sua atenção ao detalhe e a aptidão incomum para melodias pegadiças – algo não intrínseco aos seus pares – oferecendo-nos faixas como “10:15 Saturday Night”, que saltita rápida e fluidamente entre reflexões atmosféricas delicadas e passagens electrizantes e agressivas (belo solo), uma versão mais crua da assombrada (não assombrosa) “A Forest”, um trotar punk fervoroso em “Jumping Someone Else’s Train”; a segunda seria aquela a que estão mais tipicamente associados os Cure – o baixo de seis cordas de Robert Smith, os sintetizadores fantasmagóricos e os ritmos detalhados criadores de uma atmosfera morosa, sombria, por vezes sufocante. É, igualmente, inconfundível, e está aqui bem representada por portentos sentimentais como “Charlotte Sometimes”, “The Hanging Garden” ou no groove espectral de “Other Voices” (os coros e guitarras nos primeiros segundos são um belo pormenor chocantemente efémero, a faixa que se construiria à volta desses dois elementos…). A terceira fase passa por demonstrar os Cure como génios loucos da pop, desafiadores-destruidores de expectativas e barreiras entre géneros. O pop-jazz canhestro de “The Lovecats” saracoteia num refrão pseudo-ragtime, enquanto Robert Smith brinca e desarmoniza consigo próprio: é um dos momentos mais felizes desta banda como escritora de canções pop. Entre momentos declaradamente 80s como “Close To Me” e a new wave de “The Walk”, os The Cure provam-se, aqui, como uma banda excitante, cheia de curvas inesperadas.
Mesmo faltando a coesão sónica, propósito e direção de um álbum de estúdio, o sequenciamento desta colectânea é inteligente, um documento essencial na história da banda, fulcral para entender a sua evolução.
Fechemos os olhos, então.