A banda-sonora de um filme semi-cómico deflagra bem no meio da Beatlemania, alimentando ainda mais o fogo da banda mais popular do mundo
1964 foi um ano importante para os Beatles, o ano em que a Beatlemania se consolidou para sempre, transbordando as fronteiras do Reino Unido para a América, e para o mundo inteiro. Depois dos dois primeiros discos, em 1963, a criatividade e energia dos rapazes de Liverpool não davam quaisquer sinais de abrandar, antes pelo contrário. Se Inglaterra estava rendida desde a primeira hora, os EUA passaram boa parte desse ano sem grande atenção, devido a confusões ligadas às editoras. Perto do final do ano, com uma digressão dos Beatles marcada para o início de 64, Brian Epstein lançou uma campanha de marketing e forçou a edição de “I Want to Hold Your Hand” antes do previsto. O single, que já andava a rodar pelas rádios, chegou às lojas a 26 de Dezembro e explodiu. Vendeu um milhão de cópias e chegou ao topo das tabelas a meio de Janeiro, a meros 15 dias da chegada dos rapazes aos EUA.
Tudo estava a acontecer ao mesmo tempo. A 7 de Fevereiro, chegam a Nova Iorque para uma digressão que duraria até 22 do mesmo mês. Nesse período deram concertos, inúmeras entrevistas e apareceram três vezes no Ed Sullivan Show, que bateu o recorde de audiência. Por todo o lado, a febre estava a alastrar, e as multidões e a loucura aumentavam de dia para dia. Até o agente de Elvis, o famoso Colonel Tom Parker, fez questão de contactar os Beatles e transmitir-lhes que tanto ele como o próprio Elvis haviam gostado muito de os ver na televisão e lhes desejavam as maiores felicidades.
É neste contexto que surge A Hard Days’ Night, o primeiro filme de um contrato de três que os Beatles protagonizariam. Elvis já havia mostrado o poder do cinema no espalhar de um mito, e os Beatles eram os clientes seguintes. A estreia estava marcada para Julho e, no início do ano, havia apenas duas pequenas tarefas a cumprir (isto no meio da digressão mais importante das suas vidas): compor as músicas todas para a banda sonora e filmar todo o filme. De facto, as coisas andavam rápido.
Em Janeiro de 64, os Beatles estavam em Paris para uma série de concertos no Olympia. Aproveitaram para dar um salto aos estúdios da Emi Pathé Marconi para gravar três temas: as versões em língua alemã (!) de “I Want To Hold Your Hand” e “She Loves You” e um tema novo, o primeiro para o filme, chamado “Can’t Buy Me Love”. As gravações decorreram a 29 de Janeiro e foi a primeira e a última vez que os Beatles gravaram músicas num estúdio fora do Reino Unido.
Esta foi apenas uma das novidades de A Hard Day’s Night na carreira dos Beatles. Foi a banda sonora do seu primeiro filme; foi a primeira vez que usaram a gravação em quatro pistas em Abbey Road, permitindo uma flexibilidade diferente; foi a primeira vez que George Harrison usou em disco a sua novíssima Rickenbaker de 12 cordas, que lhe foi oferecida em Fevereiro, nos EUA; foi a primeira vez que um disco dos Beatles era composto apenas por originais; e foi a única vez que um disco dos Beatles tinha todas as músicas creditadas a John Lennon e Paul McCartney.
No início de Março, as músicas estavam alinhavadas, mas nem todas entrariam no filme, uma vez que era preciso guardar tempo para as cenas, ou seria apenas um gigante teledisco (o que talvez tivesse sido melhor). No que toca ao disco, ficou decidido: o lado A teria as sete músicas que entravam no filme e o lado B as restantes seis que estavam prontas. “Can’t Buy Me Love” a primeira a ser gravada, tinha sido já lançada como single e estava a destruir as tabelas de vendas. O resto do disco ficou pronto em Junho, com um total de 65 horas ao longo de 17 dias – incluindo a mistura.
O sucesso era previsível e confirmou-se, embora a loucura fosse tal que qualquer trabalho dos Beatles venderia bem. Mas A Hard Day’s Night, o seu terceiro disco em apenas 18 loucos meses de muita estrada, era provavelmente o melhor dos Beatles até então (e o melhor ainda estava para vir, várias vezes). Com todas as composições Lennon-McCartney, os irmãos mágicos tinham desbloqueado definitivamente a sua extraordinária confiança nas suas capacidades, tal a qualidade comercial do que lhes saía das mãos e a velocidade com que tal acontecia.
Sonoramente, A Hard Day’s Night afasta-se um pouco da matriz algo presa do rock n’ roll clássico americano que dominara as coisas até então, em benefício de uma direcção mais pop e mais idiossincraticamente britânica, a grande força da banda. É a casa de bombas como a faixa-título, “I Should Have Known Better” com a sua inconfundível harmónica, a demolidora “Can’t Buy Me Love”, as belíssimas “If I Fell” ou “And I Love Her” ou a pop saltitona de “I’ll Cry Instead”. Na verdade, não sendo um álbum tão coeso como outros que viriam depois, é ainda hoje um disco que se ouve com extrema satisfação do princípio ao fim.
A Hard Day’s Night – que recebeu o seu nome por acaso, num aparte humorístico típico de Ringo – é uma explosão de energia e de juventude, que só veio confirmar que a pena mágica dos Beatles tinha ainda muito para dar, fazendo nascer pérolas e temas contagiantes com uma leveza, uma naturalidade e uma eficácia difíceis de acreditar. Para muitas bandas, poderia estar aqui a sua obra-prima. Aqui, em terra dos Beatles, fica “apenas” um óptimo disco de uma banda em pico de juventude e a transbordar de energia e criatividade.