Smiley Smile – Da sombra de Smile, o álbum que o tempo julgou como obra maior dos Beach Boys.
O sucesso dos Beach Boys começa logo no início da carreira com o single “Surfin’” de 1961. E a partir desse momento, o grupo constituído pelos irmãos Brian, Dennis e Carl Wilson, mais o primo Mike Love e o amigo Al Jardine transformou-se numa das bandas pop de maior sucesso da América, popularizando o surf rock, abrilhantando-o com as intricadas e belas harmonias vocais dos 5 elementos. Os Beach Boys também se distinguiram em estúdio, com Brian Wilson a tomar as rédeas da produção das canções, recorrendo a técnicas pioneiras de gravação, rivalizadas apenas pelos Beatles.
Em meados dos anos 60, são exactamente os Beatles que elevam ainda mais a fasquia para todos os grupos pop do planeta. E durante um curto espaço de tempo, só os Beach Boys conseguiam rivalizar com os quatro de Liverpool.
Depois de ouvir Rubber Soul dos Beatles, Brian Wilson dedicou-se a construir um conjunto de temas igualmente coeso, pop…e barroco, com várias camadas de arranjos que elevou os Beach Boys ao mesmo patamar de criatividade dos Beatles. O álbum Pet Sounds, rapidamente se transformou na obra prima do grupo, o disco por onde todos os seguintes seriam medidos. E Brian Wilson, de apenas 24 anos, era já um dos mais importante compositores e produtores dos Estados Unidos, um mestre da pop e que estava obcecado por fazer mais e melhor. E nesse desejo de perfeição pop e de busca por músicas mais ambiciosas em termos de composição e arranjos, levaram os Beach Boys em direcção às sessões de Smile.
Tudo começou ainda durante a produção de Pet Sounds, com uma das músicas que sobrou do registo, o tema “Good Vibrations”. Este tema foi na época, a gravação mais cara e complexa em toda a história da música pop. Brian Wilson recorreu a uma técnica pioneira….gravou cerca de meia hora de música, meia hora com várias secções distintas e que de repente não faziam sentido juntas. Em estúdio, cortando e colando as fitas, Brian construiu uma música de três minutos, mas com uma estrutura progressiva, com muitos instrumentos e várias vozes. No fim, e após muitas horas de estúdio e 50 mil dólares gastos, alguns dos Beach Boys estavam cépticos em relação à nova abordagem, mas assim que o single chegou às lojas, transformou-se no maior sucesso comercial do grupo, atingindo o número 1 dos dois lados do Atlântico.
Depois da experiência em “Good Vibrations”, Brian Wilson queria fazer o mesmo com o disco seguinte. Seria um álbum conceptual, uma ode à América, quase como resposta à invasão musical britânica. As letras seriam sobre os Estados Unidos e os arranjos seriam ainda mais ambiciosos e barrocos, com algumas homenagens pelo meio, como por exemplo à música de George Gershwin ou ao jazz de Johnny Mercer. Para o efeito, convida o liricista, músico e compositor Van Dyke Parks para o ajudar na composição e na escrita das letras. Durante a Primavera de 1966, os dois permaneceram na casa de Wilson a escrever as novas músicas. Brian ao piano…e Van Dyke Parks a escrever as letras e a completar as ideias melódicas. Desde o início do projecto que Wilson e Parks assumem que as canções seriam explicitamente americanas, tanto nas melodias, que pediam emprestado temas do jazz ou à pop das décadas anteriores, como nas letras, que iriam fazer uma verdadeira viagem pelos Estados Unidos, desde Plymouth Rock, o local de desembarque dos peregrinos do Mayflower, até às ilhas do Havai.
Entre Abril e Setembro de 1966, os dois compositores escreveram a maior parte das canções para Smile. Estava na hora de entrar em estúdio, ou neste caso, em vários estúdios. Nesta altura, Brian Wilson já conhecia bem os estúdios e os engenheiros de som de Los Angeles. E com a experiência de “Good Vibrations”, aprendeu que cada estúdio contribuia com sonoridades particulares, isto claro, sem esquecer a tecnologia, como por exemplo o gravador de 8 pistas, disponível em Los Angeles apenas no estúdio da editora Columbia.
Tal como tinha feito com Pet Sounds, Brian contrata músicos profissionais, os melhores de Los Angeles, para interpretarem os instrumentais, deixando para os restantes Beach Boys apenas as vozes. As gravações começaram em Agosto de 1966 e prosseguiram até ao início do ano seguinte. Brian Wilson informou a editora que em Janeiro de 1967 o álbum estaria pronto, o que desencadeou por parte da editora Columbia um plano de edição preparado ao milímetro. A etiqueta começou a imprimir capas e fotografias promocionais e até enviou anúncios para revistas e lojas de discos. Começava assim o hype em relação a Smile, algo que se prolongou durante mais de 40 anos.
Durante 50 sessões de estúdio, Brian Wilson gravou várias horas de música, fragmentos de canções que seriam coladas mais tarde, como acontecera com “Good Vibrations”. Para além do extenuante puzzle em que se transformara Smile, os restantes Beach Boys não estavam do lado de Brian. Apesar de cantarem, com as suas harmonias angelicais, o estado de espírito não era o melhor nestas sessões, principalmente junto do primo Mike Love, que simplesmente não gostava de tanta complexidade e das letras de Van Dyke Parks. Às discussões internas é preciso juntar alguns problemas com a editora Capitol, com quem os Beach Boys entraram em conflito por causa do pagamento de royalties.
Por outro lado, a banda tinha, segundo o contrato, que fazer mais um álbum para a Capitol antes de querer começar a discutir novo acordo ou cessação de contrato. A isto tudo, falta ainda o estado cada vez mais errático de Brian Wilson, que consumia LSD e marijuana em excesso, o que originou uma série de problemas mentais.
Com um estado psicológico deficitário, com discussões entre a banda e a editora, e claro, um trabalho titânico para completar as novas músicas, a produção de Smile parou em meados de Dezembro de 1966, com Brian Wilson a dedicar-se somente a algumas músicas, como “Surf’s Up” e “Heroes and Villains”. Smile foi sendo adiado, apesar da Columbia sempre acreditar que mais cedo ou mais tarde o álbum iria ser entregue.
Em Março de 67, Van Dyke Parks afastou-se definitivamente do projecto e Brian Wilson, isolado do resto da banda, estava obcecado em terminar o tema “Heroes and Villains”. O golpe final chegou quando Wilson ouviu o novo single dos Beatles, “Strawberry Fields Forever” e se apercebeu que a concorrência tinha realizado primeiro as suas ideias complexas de composição. E semanas depois tudo se desmoronou, quando chegou às lojas Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Em Maio de 67, os Beach Boys, em comunicado oficial, confirmaram que Smile seria arquivado. Brian Wilson entrou em reclusão, mas como os Beach Boys estavam obrigados a editar mais um disco pela Columbia, a banda pegou em algumas músicas de Smile, como “Good Vibrations” ou “Heroes and Villains”, mais alguns temas novos e na casa de Brian, gravaram o disco a que deram o nome de Smiley Smile.
Brian Wilson reiterou que as fitas de Smile eram absolutamente interditas, o que obrigou o resto da banda a encontrar um caminho alternativo para completar o novo registo. Em casa de Brian, recorrendo a material de gravação mais lo-fi e a instrumentos como um piano um pouco desafinado e um velho órgão que estava numa das salas, os Beach Boys, como banda, criaram um dos mais atípicos discos do grupo e que de certa reflecte o fim de uma intensa experiência psicadélica. E em vez da rigidez do projecto Smile, os Beach Boys atiraram-se ao álbum que estavam obrigados a terminar de uma forma menos convencional, tirando partido do erro e procurando formas criativas de conseguir determinados sons sem o aparato de um grande estúdio.
Por exemplo, sem máquinas para criar eco ou reverb, gravaram vozes no fundo da piscina de Brian Wilson. Também recriaram o ambiente de festa, simplesmente deixando o gravador a rolar, enquanto todos juntos na sala de estar, entre bebidas e algumas drogas, se deixavam levar pela música, com risos e palmas à mistura. Tudo foi mais relaxado quando na verdade não o deveria ser, visto que para trás ficara uma fase que afectou todos de forma profunda e que quase destruiu os Beach Boys.
Devido a todos estes factores, a estas abordagens únicas de gravação e produção, Smiley Smile é um disco que em termos sónicos soa diferente a tudo o que veio antes por parte do grupo californiano. Por ser uma obra de arte que não é rock, mas também não é avant-garde, os Beach Boys acabaram por não convencer os críticos e os seus mais fiéis seguidores e isso notou-se nas vendas quando o álbum saiu em Setembro de 1967.
Smiley Smile tornou-se o primeiro de três discos em que o grupo abordou a escrita e produção de uma forma mais lo-fi, em que a qualidade das canções baixou muito. Mas por outro lado, surgem aqui e ali, momentos pop psicadélicos únicos, pequenas bizarrias que só foram possíveis devido a esta abordagem dos Beach Boys, como que a encontrarem finalmente o seu espaço no legado do rock, depois da “tirania” de Brian Wilson durante a fase Pet Sounds e Smile. Depois de Smiley Smile seguiram-se Wild Honey, também de 1967, e Friends de 1968.
Apesar de renegado sempre para segundo plano, em comparação com Smile, o álbum que nunca o chegou a ser (a não ser mais recentemente versões com a edição a solo, de 2004 e de 2011, naquela que é a versão mais aproximada às ideias de Brian Wilson), a verdade é que com o passar das décadas, Smiley Smile tem sido cada vez mais apontado como um disco de referência para se compreender a fase psicadélica dos Beach Boys, um álbum que hoje faz mais sentido quando olhamos para a pop mais alternativa, onde os momentos mais experimentais e lo-fi andam de mão dada com as mais vibrantes melodias e arranjos melódicos.
Smiley Smile prova que, de facto, não é necessário gravar música de forma perfeita, nem tudo tem de soar bem, para se construir boas canções ou um universo sónico particular. O que os Beach Boys nos deram foi uma janela para o seu mundo conturbado, em que o erro se transformou em arte superlativa e onde as experiências alucinogénicas acabaram por ter um papel determinante na concepção do produto final. Um álbum do seu tempo e que aos poucos começa a sair da sombra do irmão Smile. E ainda bem, dizemos nós!