
Os acordes do Super Bock Super Rock voltam a agitar as águas do Tejo, naquela que é a vigésima segunda edição do festival. Num dia de calor tórrido onde nem uma nuvem mancha o céu, o programa ecléctico de luxo deixa-nos a salivar. Com estas premissas entramos no transfigurado Parque das Nações, esperando tudo e um pouco mais.
Calhou a Surma a honra de abrir as hostes, com um concerto morno de final de tarde, no palco EDP. Começávamos por ouvir um crepúsculo de harpa, tocada por Gambuzino Caramujo, nome artístico da harpista que em palco acompanhava Surma. Os beats esfumados, os teclados poeirentos e a guitarra e baixo delicados de Surma uniam-se com uma harpa que soava a Tchaikovsky, abrilhantando as paisagens sonoras urbanas criadas pelas electrónicas.
Seguimos para os antípodas do palco EDP, o palco Antena 3, onde Alek Rein já se preparava para entrar em palco. O projecto de Alexandre Rendeiro abria as festividades do palco exclusivo dos portugueses em formato guitarra/baixo/bateria, com o seu rock enciclopédico e pilhador do passado – tão confortável na pop dos 60s, folk rock, blues ou em descargas atonais stoner. Ainda que não invente nada, o talento de Rendeiro para dar o acorde hábil a composições onde mudanças de tempo e melodia, acompanhadas de solos virtuosos, é uma constante, captando a nossa atenção. Contudo, se o produto não era fresco, Alek Rein não se esforçou para o publicitar (ou sequer disfarçar) como algo mais excitante: a presença de palco dos três homens era nula e ficou-se com um belo par de cancões rock à espera de rockstars. Infelizmente mediano.
Com meia hora de atraso, os Lucius tomavam conta do palco EDP. Com a sua synth-pop gloriosa e sinfónica, o quinteto de Brooklyn tornava a tarde tórrida de Julho numa boate onde ora se dançavam slows à luz da bola de espelhos ora mexidas canções para a anca. Mas o duo de vozes de Jess Wolfe e Holly Laessig falhou em cativar-nos, pelo que a vontade de irmos ver Benjamin ao palco Antena 3 era latejante.
Dando uma vibe mui Springsteeniana (devia ser dos jeans e da camisa branca decotada), Benjamim soltou num esgar a satisfação por poder soltar toda a sua energia em palco, acto atrasado pelas dificuldades técnicas que se verificaram no festival ao longo deste primeiro dia. “Agora sim!”, meio grunhia. Éramos dele. O país assolado pelo terror do Ultramar como pano de fundo, o amor a toldar a imagem com filtros mais vermelho-cravo: apresentava-se Auto Rádio, um dos triunfos discográficos portugueses do ano passado.
E, à semelhança do Boss, Benjamim foi triunfal, confiante, um messias demasiado blue collar para ser messiânico. Celebrava-se um ano volvido desde o início, no Coreto de Alvito, da sua tour de 33 dias seguidos, “A Volta a Portugal em Auto Rádio” – como tal, o clima foi de absoluta farra. “Cantem esta connosco.”, pedia o cantautor, bem-sucedido na sua empreitada. Cada cancão transformada num êxito incontornável pela forma como era fulgurantemente tocada. “O Quinito foi para a Guiné” resultou num refrão repetido ad infinitum pelo público; “O Sangue” numa versão dançante, eléctrica, frenética; “Auto Rádio” estendida a proporções épicas; o cantautor de Abril A.P. Braga convidado para cantar “Rosie” – tal como em disco -, no que foi o momento mais jubilosamente belo do concerto. Pelo final oferecido pela irrequieta e barulhenta “Sintoniza”, a rendição era total perante Benjamim e sua excepcional banda. Like a Boss.
Passar uns minutos no palco Super Bock bastava-nos para absorver suficientemente The Temper Trap. O quarteto de Dougy Mandagi e amigos falhava em agarrar o público fora dos êxitos do seu disco de estreia, Conditions (2009). “Love Lost”, “Down River” e, principalmente, “Sweet Disposition” – que integra a banda sonora do êxito de cinema indie (500) Days With Summer – foram das poucas músicas que fizeram o público regozijar, tendo mesmo o vocalista de ir ter com os fãs, na última canção, para os entusiasmar.
Kurt Vile tocava ao mesmo tempo no palco EDP, também oscilando entre o quente e o frio. A noite caía e, com ela, os roxos e azuis dançavam ao som do seu rock etéreo, bem ao estilo da Pensilvânia. Primeiro com guitarra, depois com banjo, depois com guitarra outra vez, o cantautor norte-americano apresentou maioritariamente canções do disco de Setembro passado, b’lieve i’m goin down…. O momento mais destacável terá sido aquele em que se ouviu o tema de abertura do disco de 2013, “Wakin’ On A Pretty Day”.
Ficava tarde e o MEO Arena – palco Super Bock – começava a ferver para The National. A já seminal banda norte-americana era, então, recebida a gritos ensurdecedores, ao som de “Please, Please, Please, Let Me Get What I Want” (The Smiths).
Será o aburguesamento dos The National inevitável? Após o seu trio de obras-primas, apareceram-nos mais cansados, amansados e aborrecidos em Trouble Will Find Me. Mas o problema é da raça desse disco e talvez do labor em estúdio, pois se falarmos de concertos, o termo “burguês” é desconhecido pelos The National. Abrindo com dois destaques do último trabalho, “Don’t Swallow The Cap” e “I Should Live In Salt”, frisa-se: estamos na presença de uma das melhores bandas de indie rock dos anos 2000, com catarse, agressividade e pujança para oferecer em iguais e gordas doses. Segue-se “Bloodbuzz Ohio” e a consequente histeria do público, surpreendendo-se o mesmo com a nova, tão agressiva como pegadiça, “The Day I Die”. Mais duas estreias ao longo do concerto: “Can’t You Find a Way”, um crescendo em lume-brando e a estreia mundial de “I’m Gonna Keep You”, canção caracterizada pelo vocalista Matt Berninger como ideal para os momentos finais do baile de finalistas (hilariante comentário de Berninger ao ser informado pelo guitarrista Bryce Dessner que o conceito de “prom” não existe em Portugal: “You guys don’t get prom?! That’s the only place Americans get laid!”). Virtuosismo atrás de virtuosismo, a coda de piano de “Slow Show” deu o mote às faixas lideradas pelo instrumento, cada uma mais épica que a outra: “Pink Rabbits”, “England” e “Fake Empire”. Tocados os hinos “Mr. November” e “Terrible Love” (este último com o vocalista assoberbado pelas mãos ansiosas por tocar no seu ídolo, perdido no meio do público eufórico), o momento de despedida é cantado em coro pelo MEO Arena, apenas duas guitarras acústicas acompanhando, Matt sem microfone bradando as letras apoiado nos braços do publico cantante: “Vanderlyle Crybaby Geeks”. Colossais, como de costume.
Ao mesmo tempo que a catarse era atingida no palco Super Bock, no palco EDP a festa era diferente mas atingia os mesmos pontos com igual eficácia. Ainda sem qualquer música a ouvir-se, Jamie xx já levava o público ao êxtase. Nas mãos, um cachecol de Portugal que explicava toda a emoção e resumia bem a primeira noite do festival – por todo o recinto, ouviram-se dia e noite cânticos de celebração da vitória da selecção portuguesa no campeonato europeu de futebol – e, em especial, do golo de Éder. No set de Jamie xx não se pode bem falar em canções, mas conseguimos falar de emoções e samples que ecoaram aqui e ali. Abrindo com o trecho de “The Rest Is Only Noise”, as cores do cachecol que trazia tornavam-se mais intensas e emotivas. Passando por pedaços de “Gosh”, sons caribenhos dos tambores de aço que percorrem toda a sua obra – não fosse também a Inglaterra, como Portugal, carregar influências musicais das ex-colónias -, “NY Is Killing Me”, “Seesaw”, “Higher Places”, todo o soul de uma vida, etc. Tudo ele conseguia inserir e misturar com tudo. Com dois pratos de vinil e uma mesa de mistura, Jamie xx mostrava-nos a sua mestria, como tão facilmente criava as paisagens sonoras mais festivas e idílicas, que se reflectiam nas luzes nostálgicas e oceânicas que faziam amor no tecto do pavilhão. A festa terminaria ao som da incrível “Parabéns”, do brasileiro Marcos Valle, talvez em referência ao cachecol que marcara a entrada em palco do produtor inglês. Sublime.
Texto: Francisco Marujo e Guilherme Portugal
Fotos: Francisco Pereira e Francisco Fidalgo