
Segundo dia de Super Bock Super Rock e a história é a mesma. Éder, Éder, Éder. Quase ao ponto de termos vontade de não ser campeões. Mas, fanatismos à parte, o segundo dia mostrou-se mais corpulento em rock, ainda que não ficando a dever nada ao primeiro.
Começámos a tarde no palco Antena 3 com os Basset Hounds. Oriundo de Lisboa, o quarteto mostrou a quem ia aparecendo por ali a sua mistura muito bem conseguida entre shoegaze, rock psicadélico e jangle pop. As malhas solarengas casaram muito bem com o calor que, apesar de intenso, não impediu que o esforço e a energia que a banda demonstrou em palco deixassem de ser apreciados pelo público – alguns abanaram-se, outros saltaram, mas poucos foram os que estiveram quietos durante a actuação dos Basset Hounds. Num concerto que passou pela interpretação quase na íntegra do homónimo de estreia lançado pela banda no ano passado, os destaques vão para as energéticas “Swallow Bliss” e “Young”, para a idílica “Marr” e para a portentosa “Over the Eyes”, que fechou a passagem dos Basset Hounds pelo SBSR em grande festa, com direito a moche e tudo.
Depois, era chegada a vez de nos espantarmos com Petite Noir. O belga/sul-africano de origens angolanas e congolesas apresentou-se no palco EDP, ao final da tarde, de guitarra em punho, pronto para conquistar quem ali estava com a poção mágica de indie rock, pós-punk e afro-beat que cozinhou e mostrou ao mundo no seu álbum de estreia de 2015 La Vie Est Belle / Life Is Beautiful. Escusado é dizer que cumpriu com distinção a sua missão – no final do concerto, mesmo quem estava sentado levantou-se para oferecer ao artista e à sua banda uma enorme e merecida ovação.
Glockenwise, palco Antena 3. Directamente de Barcelos, os quatro rapazes trouxeram o rock sem merdas à metrópole. No concerto não faltou moche nem crowdsurf, delírio completo, tudo era ao mesmo tempo efémero e infinito, como a juventude que vivemos e já deixa saudades. De forma alguma nos deixaram decepcionados, ao contrário da banda que ao mesmo tempo ressoava pela reverberação interminável do palco Super Bock – o sonicamente infame Pavilhão Atlântico.
Falamos de Bloc Party, claro. Na uma hora que durou o concerto foi giro quando tocaram o clássico instantâneo “Helicopter” – importa ressalvar que se trata de uma música com 11 anos – morrendo sempre que tocavam uma canção do último disco Hymns. De resto, tão bom quanto uma banda cuja relevância se vê eclipsada pelos anos pode ser. Com MEO Arena ainda a meio gás, valeu a pena podermos contemplar o excelente trabalho de ginásio do vocalista Kele Okereke nos últimos anos.
No palco EDP, já se ouvia as electrónicas compassadas de Rhye. Cobertos por um cerrado fumo rosa, a banda que oferece prazeres na oferta do silêncio parecia condenada ao burburinho e aos “Foi o Éder que os fodeu!” do público do Super Bock Super Rock. Todavia, ritmos soluçados, dois violinistas armados de uma mestria fora do comum e um baixo deslizante e sedutor, assim como a extensão das canções para formato festival, captaram e agarraram a multidão do palco EDP. Milosh, o vocalista, lembrou-nos de Sade, tal a feminilidade e suavidade do seu canto. Rhye é projecto versátil e capaz, ficando a equipa Altamont com expectativas altas para o segundo disco da banda, ainda com data indefinida. Seguimos para o palco Super Bock. Afinal, Iggy Pop – uma das maiores lendas do rock, se é preciso lembrar – estava quase a entrar em palco.
“Ele fez a merda que gerou mais bandas do que qualquer outra pessoa, de sempre.” A frase é de Joshua Homme, cabeça dos Queens Of The Stone Age, baterista dos Eagles of Death Metal e, mais recentemente, guitarrista de Iggy Pop no seu último álbum, Post Pop Depression. Não estava presente no concerto, assim como Matt Helders e Dean Fertita. Como resposta à ausência destes, uma estelar banda de suporte trazer-nos-ia ao êxtase no concerto. Com Bowie, Reed, Prince e Lemmy a deixarem este mundo, Iggy é uma das últimas lendas. E enquanto saltava freneticamente de um lado ao outro do palco chamando a multidão ao delírio, é-nos claro: existem rockstars e existem lendas.
Iggy Pop é uma lenda, um dos grandes. “No Fun” e “I Wanna Be Your Dog”, dos seus Stooges, abrem a festa. Sem filtros, guitarra a volume 1000. Selvático, incontrolável, perigoso – está explicado no nome do terceiro disco da banda: Raw Power. “The Passenger” reduz às cinzas os cépticos, Iggy comanda a banda a reduzir o volume só para o público ter mais espaço para gritar o riff. “Lust For Life”, “Five Foot One”, “Sixteen”, “1969”, “Nightclubbing”. Tantos clássicos indissociáveis da história do rock, tão urgentes no concerto de hoje como há 40 anos atrás.
Microfone tirado da virilha e Iggy grita: “Obri-fucking-gado!” Obrigado nós, Sr. Pop. Pelo microfone na sua virilha, pela quantidade hilariante das interjeições “Fuck!”, pelo pequeno deleite que foi tê-lo a flexionar-se qual orangotango depois da sua banda ter saído do palco, pelo concerto para a vida. Obri-fucking-gado.
Ainda mal tinha começado Iggy Pop, que não conseguia ultrapassar metade da lotação do palco Super Bock, e já o palco EDP enchia com a chegada próxima de Mac DeMarco. Soundcheck que passou directamente para concerto, sem pausas no contacto com o público, sempre irreverente, divertido e sem pudor. O público já ao rubro e Mac irrompe pavilhão de Portugal adentro com “The Way You’d Love Her” e “Salad Days”. Ouvíamos tantos ou mais gritos que em Iggy Pop, DeMarco agradecia com um “Thank you very mucho…or should I say ‘obrigado’?”. As estrelas brilhavam e a lua quase se enchia em “The Stars Keep On Calling My Name”. No final da música, a banda criticava o espaço da plateia dedicado aos portadores de pulseira VIP, dizendo “You better dance on the next song”, “avisando” que quem lá estivesse no final iria levar o beijo da sua vida, dado pelo baixista. A seguir, a balada de amor – não serão todas as suas canções cantigas de amor? – “Another One”.
Num concerto rico em canções do disco que o lançou para o estrelato indie – falamos de 2 –, ouvimos ainda “Cooking Up Something Good”, “Viceroy” e “Freaking Out The Neighborhood”. Pelo meio, havia lugar para diálogo directo com o público, risada geral, a banda a abrir a garrafa de Super Bock oferecida pelo festival – “Thank you, Super Cock!”, dizia Mac DeMarco, o riso e os aplausos eram gerais -, o cantor a apelar ao público para que desse os parabéns à sua namorada num vídeo que lhe enviaria no dia seguinte, a apelar para que o máximo de pessoas possíveis se pusessem às cavalitas umas das outras, uma jam que poderia fazer parte do terceiro disco dos Tame Impala num universo alternativo em que não tivessem seguido a pop relaxada e delicodoce de Currents, uma festa de air guitar em “I’ve Been Waiting For Her”. No final, “Chamber of Reflection” e “Together” fechavam um dos pontos mais altos do festival, um concerto onde público e artista se uniam como em mais nenhum, devotos um ao outro, assim se vendo quem realmente gosta daquilo que faz.
Findada a festa, as massas seguiam para o terramoto de Massive Attack. A uma velocidade vertiginosa, acompanhada por uma trepidante batida ombreada por teclados avassaladores, várias bandeiras de países e insígnias de partidos são mostradas num fundo negro. Os Massive Attack, espelho ecléctico da paranóia 90s, traziam o seu som hibrido, negro e hipnotizante acompanhado dos millenials Young Fathers, estranhos nenhuns às dificuldades do que é sentir-se perdido num mundo tão ligado. A sequência inicial era marcada por “Risingson”, uma “Future Proof” maior que a vida e uma “Pray For Rain” que por salvação, ou talvez, simplesmente, compreensão, rezava. “Labour Party” e outros que tais relampejavam no ecrã, mas rapidamente se espelhou a desconexão sentida pelos presentes em relação à representação partidária: “Anti-Pizza Party” e “Conservative Jerks Party” pareceram provocar mais satisfação nos presentes do que qualquer outro dos partidos “a sério”. Títulos de notícias, em português, sobre a questão Brexit foram dispostas a azul, mas o público só fez notar os seus sentimentos por entre urros e assobios nas notícias a vermelho: “Portugal Vence Euro 2016” e “Atriz Porno Confundida com Primeira-Ministra”. Seria a mudança de assuntos, posta ainda mais em evidência pelas cores distintas, mera coincidência? A retórica da banda era notória, assim como o era esta questão.
“Voodoo In My Blood”, do novo EP, trazia os Young Fathers a palco. Por trás, um painel de aeroporto, com partidas e chegadas, lentamente se convertia num painel de denúncia da situação que as fronteiras vivem hoje em dia. Destino atrás de destino via no painel a sua fronteira fechada, terminando o sonho de um mundo global, pacífico e unido. A mensagem dos Massive Attack era clara: o mundo está cheio de merda e nós estamos aqui para vos mostrar tudo o que de tenebroso há nele. Ainda assim, havia mensagens de esperança, chamadas à acção, mostrando que por mais estragado que possa estar o mundo, ainda é possível mudá-lo. A meio do concerto, lia-se “Dedicado às vítimas dos trágicos e incompreensíveis acontecimentos em Nice”. Tal como no concerto do Super Bock Super Rock de 2014, ainda no Meco, a banda continua a actualizar o seu espectáculo multimédia quase ao minuto e sempre à língua e local onde tocam. Ouvia-se, então, “Inertia Creeps”, o Brexit feito tema central do espectáculo multimédia que era pano de fundo para o grito dos Massive Attack e banda acompanhante.
Como dito em cima, a mensagem tornava-se clara. No ecrã, lia-se: “We can suceed and create a more equal world”. E é incrível perceber o quão relevantes, artística e politicamente, os Massive Attack continuam volvidos 28 anos desde a sua formação. O apelo de “Safe From Harm” fazia-se acompanhar, no fundo, por fotos e quadros de revoluções – pareceu-nos, a certo ponto, ver a Tomada da Bastilha em várias representações. No encore, trouxeram-nos a icónica “Unfinished Sympathy”, acompanhada por fotos de refugiados sírios e a frase “Estamos Juntos”. E os Massive Attack dão-nos essa esperança e conforto, por mais desunido que o mundo pareça a cada dia que passa. Possivelmente o concerto mais impressionante e impactante de todo o festival.
Depois da escura “revelação”, fomos celebrar a esperança da união para Moullinex, no palco Carlsberg. Pum-tss-ta-pum-tss-pum-tss-pum-tss. Geralmente é assim: uns drops e fabuloso, fantástico, a cerveja já parou de bater e agora só bate o sono. Electrónica dos 300, uma vez apelidei a alguns concertos de after-parties. Moullinex é excepção. Moullinex arma-se de uma bateria, transições estelares e uma seleccão incrível de temas. Moullinex é um espectáculo. Estivessem lá. Venha o terceiro e último dia.
Texto: Francisco Marujo e Guilherme Portugal com Luís Marujo
Fotos: Francisco Fidalgo e Francisco Pereira