Andei algo descrente de Sufjan Stevens durante algum tempo, confesso. Custava-me ouvir o que o músico ia fazendo, trabalho após trabalho, e perceber que a qualidade dos discos lançados estava bem distante da mestria daquela obra maravilhosa que veio ao mundo em 2005 e que foi, para mim, o melhor disco saído nesse ano, faz agora uma década. Refiro-me a Illinois, obviamente. De lá para cá, na verdade, os álbuns realizados pelo artista de Detroit nunca mais me encheram a alma, nunca mais me surpreenderam nem me encantaram como aquele que atrás referi. Isto de comparar as coisas tem de ser feito, mas é lixado. Concordo com os que dizem que Sufjan Stevens nunca fez um mau disco, mas também espero que alguns concordem comigo a respeito de Illinois, álbum claramente de outro campeonato, bem acima dos que foram, entretanto, saindo.
Chegados a 2015, e quando nada o fazia prever, eis que nos chega, nos últimos dias de março, um novo disco de Sufjan Stevens. E, claro, lá fui ouvir as suas 11 canções, algo receoso, acautelando de antemão mais alguma eventual deceção que pudesse vir a caminho. Engano total, e cá estou eu, de novo, crente nos predicados de Stevens, capaz de ver nele um futuro artístico tremendo, tentando esquecer um ou outro embaraço anterior, como foi, por exemplo, o álbum Age of Adz, de 2010. O seu recentíssimo trabalho dá pelo nome de Carrie & Lowell, e foi gravado em 2014, no estúdio caseiro do músico, em Brooklyn. O conceito do disco gira à volta de um doloroso sentimento de perda, uma vez que sua mãe, Carrie, faleceu em 2012. O outro nome, espelhado no título do álbum, é o do padrasto de Sufjan Stevens. Assim, e para além dessa consciência íntima de dor que vai transparecendo em muitas das canções do disco, está ainda presente a inesgotável temática da memória de um tempo longínquo, em que a família viajava até Oregon para passar férias, pelo que um esgar de saudade surge também a dar um ar da sua graça neste Carrie & Lowell. Parece-me, acima de tudo, um disco em que o artista faz contas com um passado movediço, ora mais distante, ora mais próximo, tecendo nele múltiplas narrativas de solidão, de desencontros, de ausências físicas e espaciais. Ou, em última análise, Carrie & Lowell pode também ser um disco que fecha as portas a um tempo morto, abrindo outras para aquilo que o destino lhe trouxer. Em quaisquer desses vários sentidos, o disco estende até ao ouvinte a sua inequívoca aura romântica, pontuada por sombras e neblinas densas, mas onde nunca falta uma luz (as letras, as melodias, os arranjos, a voz doce de Sufjan Stevens) para nos guiar até um qualquer lugar onde nos sintamos confortados.
“Death With Dignity” abre o disco em grande estilo, o estilo que no artista mais admiro, intimista, próximo dos calores do coração e amigo das almas amigas e acolhedoras. “Should Have Known Better” segue-lhe os passos, e a fragilidade de todo aquele som é arrasadora, no melhor dos sentidos. Não é um disco para o verão, nem para grandes correntes de ar, muito mais próximo dos ínfimos murmúrios dos finais de tarde, quando o sol parece tímido e com vontade de se esconder em casa, para nunca mais voltar. As raízes da folk, que já conhecíamos de alguns dos seus discos anteriores, volta a ocupar aqui um lugar central. Em todas as faixas do disco, aliás, isso é notório. “Fourth of July” tem um lirismo irrepreensível, e é um dos melhores momentos de Carrie & Lowell. Se isto não é tocante (com embalo sonoro a condizer), então o melhor é não fazer caso daquilo que se canta: “Shall we look at the moon, my little loon/ Why do you cry? / Make the most of your life, while it is rife / While it is light”.
Todo o disco habita um prazeroso espaço celestial, revelando uma voz à procura de um tempo tragado pelo próprio tempo. Há pequenas analepses em que vislumbramos ambientes distantes, irrecuperáveis. A beleza das canções, dos seus versos e a capacidade de recuperar cacos de existências passadas por parte de Sufjan Stevens, esses são, seguramente, os grandes trunfos de Carrie & Lowell. A delícia deste disco reside muito aí, bem como na capacidade de acolhimento que conseguimos ter (ou não ter) em relação à dor e ao luto. E tudo isso poderá ser determinante para a apreciação deste novo objeto sonoro de Sufjan Stevens.
Bela crónica, meu amigo! Interpretação perfeita do espírito deste belo álbum em escrita de excelência.