
Tenho um carinho muito particular por Stacey Kent. Pelo seu percurso, pela sua voz, pela sua presença risonha, pelo jeitinho émepêbista que tem enraizado na alma, pelo conforto sentimental que transparece das suas interpretações. Quando todos estes predicados se juntam num só sujeito, é obrigatório compreender tratar-se de uma artista singular, evocativa, por vezes, de outras épocas e de outros tempos, mas cuja afirmação no presente panorama musical do jazz cantado por vozes femininas há muito está estabelecida. Nesse mesmo cenário, com pequenas variantes de estilo e repertório, habitam também Diana Krall, Melodie Gardot, Hilary Gardner, Madeleine Peyroux ou Lisa Ekdahl, por exemplo, mas só em Stacey Kent encontro a substância necessária e fundamental para retirar do jazz cantado aquilo que nem sempre ele me dá: a verdadeira alegria. Sendo isto que escrevi uma quase declaração de amor, foi também com o coração cheio desse bem imaterial que me desloquei, uma vez mais, aos Jardins do Marquês, tão próximos de minha casa que tenho feito deles, nos últimos tempos, uma espécie de segundo lar, mais melódico e etéreo do que o verdadeiro. Foi assim, com a razão embevecida pelo sentimento, que assisti à quinta noite do EDP Cool Jazz de 2016.
Uma nota breve para Marta Ren & The Groovelvets, ex-voz bem carismática dos Sloppy Joe. Abriu a noite com muito ritmo, muito soul, muito groove, boa presença em palco (eram 10 músicos ao todo), uma acentuada pronúncia nortenha e um disco novo para apresentar: Stop Look Listen. Tentou animar a audiência, insistentemente, mas sem grandes resultados. O público não queria dançar, e foi com algum humor que a artista se mostrou resignada. Foi pena, mas há noites assim…
Depois veio Stacey Kent, e desde logo se percebeu que o namoro ia ser intenso. Disposta a fazer um concerto para ficar na história da edição deste ano do EDP Cool Jazz, a artista norte americana não se poupou a elogios a Portugal, aos portugueses, bem como ao sítio onde se apresentava. Foi falando na nossa língua, e por momentos o seu português foi quase imaculado. Impressionou a facilidade com que falou, tanto em português como em francês. Mas Stacey Kent falou, sobretudo, ao coração. Ao de todos os presentes, mas principalmente ao meu, até porque sei que foi para mim (se disserem que foi para todos é mentira) que cantou “Estrada do Sol”, uma das várias canções de Jobim, o grande maestro soberano, que Stacey Kent trouxe à noite de Oeiras, mas também “Ces Petits Riens”, de Gainsbourg, ou “Só Danço Samba”. Apresentou a banda, destacando-se o marido Jim Tomlinson, cujo saxofone faz lembrar bastante o de Stan Getz, cantando com ela “Águas de Março”, num dos melhores momentos de todo o espetáculo. Mas houve outros (mas não foram, de facto, todos?) de enorme qualidade, como por exemplo quando cantou “So Nice” (lembrando Marcos Valle, com quem dentro de dias vai estar para um show no Brasil), “One Note Samba”, versão inglesa do intemporal “Samba de Uma Nota Só”, “Samba da Benção”, dos grandes Vinícius de Moraes e Baden Powell, deixando quase para o fim da sua atuação a deliciosa “Jardin d’Hiver”, tema de Benjamin Biolay, imortalizado por Henry Salvador, mas também por Stacey Kent que já a gravou em disco por duas vezes.
Os Jardins do Marquês transbordaram de amor, paz e serenidade durante cerca de hora e meia. Foi esse o tempo do concerto de Stacey Kent, e foi esse também o tempo de flirt entre a cantora e quem a escutou. Imenso e magnífico, de facto. Quando terminou, e que me perdoe Jim Tomlinson, fui para casa com Stacey Kent. Na cabeça e no coração, claro, que é ainda onde nos encontramos os dois agora, já passadas tantas horas, embora nem um nem outro desconfiem da realidade que aqui vos confesso.
- fotos da ETIC gentilmente cedidas pela organização do festival EDP Cool Jazz