Cumprem-se hoje exactamente 30 anos sobre a edição de uma das maiores obras-primas da música popular do século XX. The Queen is Dead, terceiro e penúltimo disco de originais da meteórica carreira dos The Smiths, é por muitos apontado como o seu melhor trabalho (eu oscilo entre este e o seguinte, Strangeways Here We Come). O 30º aniversário é, assim, ocasião mais do que apropriada para revisitar este monumento em forma de disco.
O álbum foi gravado e terminado em 1985. Em cinco anos de carreira, aliás, os Smiths editaram quatro discos de originais, mais três com temas novos e outros já conhecidos, terminando já depois do fim com um disco ao vivo. É impossível não pensarmos como o ritmo de produção das bandas se alterou e alargou a partir dos anos 90, e se não se deverá também a isso alguma perda de espontaneidade que se vai notando em muita da música produzida hoje em dia.
Entre 1984 e 1985, Morrissey e Johnny Marr estavam imparáveis em termos de composição. O último, guitarrista genial enquanto escritor de melodias, e o segundo enquanto letrista e escritor de canções (Morrissey chegou a dizer, quando criticado por não escrever música, que instrumental pop sem letra podia ser música, mas com certeza não dava uma canção, e se calhar tinha toda a razão).
Apesar dessa torrente de produção, a banda começava a ter os primeiros problemas que, pouco mais tarde, se intensificariam e acabariam por causar o fim do grupo. O baixista Andy Rourke foi despedido por Morrissey devido ao seu uso de heroína, acabando por ser readmitido por influência de Marr duas semanas mais tarde (o ambiente, naturalmente, nunca mais foi o mesmo). E, para além disso, os Smiths viram-se na primeira de muitas batalhas judiciais da sua existência, neste caso contra a sua própria editora, a Rough Trade. Depois dos dois primeiros discos, e com a popularidade a subir em flecha junto dos adolescente inadaptados de Inglaterra, os rapazes começaram a ser assediados por várias editoras maiores, e o presidente da Rough Trade, Geoff Travis, decidiu agir. Levou o grupo a tribunal para que este decidisse se Hatful of Hollow – composto sobretudo por lados B e versões diferentes do disco de estreia – contava ou não como um dos discos a que os Smiths se tinham obrigado com a editora. Johnny Marr assume a defesa da banda, sozinho, dispensando um advogado, acabando trucidado em tribunal. Resultado? The Queen is Dead, há muito pronto, esteve mais de seis meses à espera que a disputa judicial se resolvesse. Quando saiu, foi muito bem recebido, mas a própria banda já caminhava noutras direcções, e para o fim que chegaria um disco mais tarde.
Falar de Smiths é falar das letras de Morrissey, falar das melodias mágicas de Marr, é falar, naturalmente, das suas canções. E disso The Queen is Dead tem com fartura, para dar e vender.
O álbum arranca com a faixa homónima, em jeito de sátira, uma alfinetada assertiva sobre toda a família real britânica, que Morrissey até hoje despreza profundamente. O som é tenso, ritmado, quase um resquício do pós-punk de uns anos antes. É também o primeiro sinal de que, musicalmente, os Smiths tinham dado um salto de gigante face aos primeiros discos. A composição é mais rica, a produção também, com mais instrumentos e mais camadas.
Segue-se “Frankly Mr. Shankly”, um recado ao mesmo Geoff Travis num ritmo quase reggae até se soltar a veia pop de Marr.
“I Know it’s over” é uma balada de sofrimento, a canção perfeita para qualquer coração partido que queira mergulhar nesse sofrimento. Foi, aliás, votada como uma das canções mais deprimentes de sempre, e percebe-se porquê. Mas é ao mesmo tempo uma das músicas mais bonitas da banda, com uma letra que deixa Morrissey exposto, de peito aberto. “I know it’s over, still I cling, I don’t know where else I can go”, está tudo dito. Uma beleza acústica devastadora.
“Never Had No One Ever” é Mozz vintage, chorando o facto de, na verdade, sempre ter estado sozinho, sentimento de que continua, até hoje, a padecer. Um tema que poderia estar em qualquer disco dos Smiths, e que ilustra bem uma das facetas pelas quais a banda é conhecida.
O ambiente relaxa com “Cemetary Gates”, uma das mais celebradas músicas do grupo. Todo o som sugere um dia de Verão britânico, jovens correndo entre as campas, citando Keats, Yeats e Wilde. Um exemplo de como os Smiths, e Morrissey, eram capazes de fazer letras profundas e até tristes, assentes numa melodia que não tinha de ser pesada. Uma pérola pop, assente num fraseado lindíssimo de Marr, que inicialmente não estava particularmente convencido de que a música funcionaria. Estava enganado, e bem.
“Bigmouth Strikes Again” é outro dos grandes clássicos dos Smiths, e foi o primeiro single de avanço para o álbum. Um tema alicerçado num riff ligeiro e tenso de Marr, que mostra aqui todos os seus predicados, e também a prova de como a banda tinha crescido, em termos de arranjos e de produção. O título da música tem sido muitas vezes utilizado para descrever Morrissey, que nunca fugiu de uma boa polémica. Marr, aliás, queria que o próprio disco se chamasse “Bigmouth Strikes Again”, por considerar que o título escolhido por Mozz era demasiado agressivo. Aqui ganhou o vocalista.
Os êxitos não cessam de aparecer, pois a seguir vem “The Boy With the Thorn in His Side”, mais um dos enormes clássicos do grupo, mais uma vez com Marr em extraordinária forma e o vocalista a brilhar a grande altura com aquele seu lindo e inconfundível tom vocal, na altura bem mais agudo do que hoje em dia. Uma maravilha.
Segue-se “Vicar in a Tutu”, talvez a faixa mais esquecível do álbum. Uma música gingona e mexida, mas não necessariamente inspirada ou ao nível das restantes.
Tudo fica bem, aliás, muito bem, com as duas músicas que fecham o disco. Mais dois temas incontornáveis em qualquer best-of dos Smiths. A primeira é a gigantesca “There is a Light That Never Goes Out”, uma das músicas preferidas de Marr mas da qual Morrissey duvidava ao ponto de ter discutido se devia ser editada. Marr ganhou esta discussão, e até hoje é um dos temas mais queridos da banda, e faz inclusivamente parte de alguns espectáculos a solo de Morrissey. “Take me out, tonight…”, aquela linha de abertura, a guitarra de Marr, o baixo de Rourke, uma melancolia leve a caminho do ultra-romântico refrão. Uma obra-prima. Ponto.
The Queen is Dead fecha com “Some Girls Are Bigger Than Others”, um grande tema pop, com a banda a experimentar alguns truques de produção (o falso arranque, por exemplo), uma melodia que, como muitas dos Smiths, consegue ser ligeira e tensa, leve e atormentada, pop mas de alguma forma mais do que isso. Uma bela forma de terminar um belo disco.
The Queen is Dead (com a icónica capa com a fotografia de Alain Delon) chegou ao segundo lugar do top britânico, tal como outros três dos quatro discos (só Meat is Murder conseguiu ser número um). Foi um sucesso que ajudou a cimentar o lugar da banda como os porta-estandarte da pop letrada inglesa. Desde então, o seu estatuto não parou de crescer, sendo considerado por muitos o melhor disco dos Smiths e garantindo um lugar em variadíssimas votações para os melhores discos dos anos 80. Em 2013, o NME foi até mais longe, votando-o como o melhor disco de todo os tempos.
Excessivo, talvez, e daí talvez não. The Queen is Dead é uma obra enorme, carregada de temas fortes e, ouvida 30 anos após a sua edição, não envelheceu uma ruga.
Um disco fabuloso de uma banda imortal, que urge revisitar sempre.