Num tempo como este, em que “nunca foi tão fácil fazer música” e onde este recôndito país anda a parir “estrelas” da “pop” a uma velocidade frenética (o problema é quantas resistem), é um prazer reencontrar Samuel Úria, um dos que soube sempre ter o cuidado de se resguardar desse espectáculo inebriante e facilitista de dar ao público apenas o que pensa que ele eternamente deseja.
Samuel Úria, delicadíssimo cançonetista tondelense, soube quase sempre dar as roupagens certas às suas canções, feitas de rimas muito menos preguiçosas do que aquilo que diz ser. Ele que, utilizando a língua de uma forma que envergonha(ria) muitos dos seus contemporâneos (se a auto-crítica fosse projeto-lei e a indulgência reprimida da crítica), foi construindo uma obra cuidada, da qual sobressaem dois discos maravilhosos: Nem lhe tocava, de 2009, e O Grande Medo do Pequeno Mundo, de 2013 — disco absurdamente desvalorizado pela belíssima contenção que nos traz, pouco propícia à (ou em contraponto com a) efervescente adolescência que povoamos, qual brisa marítima mais forte do que aparenta.
Chegamos, assim, a 2016 e ao sucessor desse tratado, implacável na sua firmeza e olhar crítico, que era O Grande medo do pequeno mundo. Carga de ombro, nome ambíguo como de Samuel Úria já poderíamos esperar (“que nem precipitado consigo chover”, cantava há três anos em “Lenço Enxuto”, apropriando-se da linguagem meteorológica para fazer referências ao choro, à masculinidade e à auto-crítica comportamental em apenas cinco palavras), lembra-nos desta vez que, se não a violência, pelo menos a rudeza e a agressividade não só são parte integrante do universo, desde o início dos tempos, como também podem (podem?) aproximar.
“Eu não desperdiço palavras”, explicava recentemente o trovador e novo bardo de Armando Gonçalves Teixeira (“Petit” de nome artístico) a Carlos Vaz Marques, na TSF. A declaração não só é particularmente feliz na sua formulação como é toda uma declaração de intenções, passadas e presentes. A música de Samuel Úria sempre se fez disso: do “som cantado”, da palavra pregada sobre um imaginário musical que pega na tradição norte-americana (da folk ao blues, do gospel ao rock) e a funde com a portugalidade na língua, às vezes até na história (a sua incursão pelo fado, pressentida em “Cabo do Medo” e já sentida em canções anteriores, suas e que compôs para outros — como “Fado da noite que nos fez”, de Kátia Guerreiro, com letra escrita por si e arranjo de Alfredo Marceneiro — não é inocente, como o não é a língua de fora de “Império”, por exemplo).
Carga de Ombro tem essa qualidade louvável (se o é em outras artes, como na prosa literária, porque não na música pop?) de oferecer canções que podem ser dirigidas mais superficialmente e mais criticamente, sem que, num caso como noutro, se perca o que quer que seja, fundindo-se antes numa “pop” inteligente que gostaríamos de ver mais replicada. Há tempos, na reportagem que fizemos do concerto de apresentação do disco no Teatro São Luiz, em Lisboa, apontámos-lhe algumas críticas: de que as canções são menos inventivas e fulgurantes do que as dos seus trabalhos anteriores, de que há temas de qualidade menor, entre outros vitupérios.
Felizmente, deixámos a crítica ao álbum em banho-maria. E que bem marinou: foi crescendo com o tempo, as canções foram ganho novos contornos, um recheio diferente, a que hoje é muito mais difícil resistir. Mantemos, contudo, os elogios à superlativa qualidade de algumas canções que aqui figuram e que seriam figura de proa em qualquer dos seus trabalhos anteriores: a fabulosa “Dou-me corda”, feita de tensão e provocação (isto é para nos redimirmos das críticas feitas às rimas em “ão”), a maravilhosa “É preciso que eu me diminua” (“Qualquer palmo que me meça/é de mão sem cicatriz/o que eu só é largo de ossos/mas só sei crescer”, atira, olhando para dentro) e a honesta homenagem religiosa particularmente evidente em “Ei-lo” (com os coros e a voz de Selma Uamusse a darem ao tema uma grandiosidade a preceito) e em “Vem por mim” (que tem uma fragilidade e um sussurro a torcer o nariz ao livro arbítrio que são também coerentes). E há sobretudo “Graça Comum“, a canção cimeira do álbum, hino confessional de toda uma geração que pouco lhe ligará.
Quero estar pronto a dizer: / não sei. / Quero o conforto de não saber. / Quero o sobrolho interdito / a citar a lei / e ombro capaz de encolher. / Estar rouco de plágio e de rum / deposto da vala em comum. / Quero ser franco a dizer: / fui eu. / Eu não me aflito a afirmar quem foi. / Quero ter queixo caído / a ganhar o céu / e dedo para pôr onde dói. / Estar solto para ser só mais um: / o indulto da graça comum. / O que nos cabe, / o que calhou. / Estar reservado / nem sei se vivo ou se sou. / Quero dar tudo a dizer: / não há. / Quero o espartilho de não haver. / Quero ter mão de mendigo / a puxar para cá / e o senso de não merecer. / Estar pronto a tomar mais nenhum / placebo da cura do som.
As restantes, porém, se estranhámos ao início, soam hoje particularmente vigorosas: falamos de “Palavra-impasse”, por exemplo, de “Aeromoço”, que tem os fantásticos versos: “O mundo que te fez chorar / não quis ouvir-te em contramão / o mundo é só uma sucursal do chão / mas tu és melhor / volta lá ao teu primeiro amor”. Falamos de “Tapete” e de “Vital e sua moto”, também.
Se Carga de Ombro não tem a delicadeza nos arranjos do anterior, não está tão concentrado na sua composição, não deixa de ser verdade que vai a outros territórios, às vezes surpreendentes, quase sempre em viagens bem conseguidas. Termina a audição, com o tempo de digestão necessária, e chega a conclusão inevitável: quando falamos de Samuel Úria falamos de um dos melhores escritores de canções das últimas décadas e não apenas na sua língua (que, felizmente, é também a nossa). O corpo da sua obra já justifica a figura cimeira que lhe atribuímos no meio em que se move. Carga de ombro é, afinal, apenas a confirmação. Uma confirmação já desnecessária mas tão nova quanto aprazível.