A segunda edição do Festival Jardins do Marquês chegou ao fim. O Altamont esteve no fecho para assistir a um bonito concerto de Seu Jorge e Daniel Jobim. Mas não só. O mestre Tom foi figura omnipresente.
À partida, a parceria entre Seu Jorge e Daniel Jobim deveria constar na lista das mais improváveis de sempre. No entanto, e recordando o que nos dizia o grande poeta Vinícius de Moraes (“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”), a verdade é que os dois cariocas se uniram com a firme intenção de honrar a música do grande “mestre soberano” Tom, como tão bem soube cantar Chico Buarque em “Paratodos”, avô de Daniel e pai de quase toda a música brasileira pós bossa nova. (Sim, o eventual ligeiro exagero é propositado e intencional). Tudo terá começado, a crer no que se lê e ouve, na festa de uma amiga de ambos. Depois, vá lá saber-se o teor exato das conversas festivas entre os dois músicos, Seu Jorge telefonou a Daniel para lhe fazer uma proposta que, passado pouco tempo, se materializou: reinterpretar a obra de um dos maiores e mais conceituados compositores de música popular do século XX.
O que presenciámos ontem, no derradeiro dia do Festival Jardins do Marquês, foi, entre tantas outras coisas, um inusitado cruzamento de geografias (um pouco do Rio de Janeiro em Oeiras não é coisa que se veja e sinta todos os dias) e ainda a beleza que dessa inesperada interseção resultou. Dadas as circunstâncias, alguém duvidará da excelência do que vimos e ouvimos ontem? É claro que não.
Com precisão de um relógio suíço, o concerto começou às 22 horas, e para entrarmos de imediato na onda jobinesca, “Wave” foi o primeiro tema tocado. A voz troante e grave de Seu Jorge impressiona, mas assenta bem na delicadeza das melodias das canções tocadas, como em “Luiza”, por exemplo. Impressionante, de facto, a obra de Tom Jobim, que alimentou a sua e tantas outras carreiras de músicos até hoje. Todos sabemos bem da grandeza do mestre, mas quando assistimos a uma pequena amostra das suas composições, quando as ouvimos desfilar pelos nossos ouvidos, ficamos ainda mais conscientes do génio desse fantástico compositor. Ora vejam: “Passarim”, “Só Danço Samba”, “Chega de Saudade”, “Samba do Avião”. “Retrato em Branco e Preto”, “Dindi” (na versão em inglês), “Corcovado”, “Água de Beber”, “Lígia”, “Samba de Uma Nota Só” e tantas outras, todas de seguida, quase sempre pela voz de Seu Jorge, mas algumas também na voz de Daniel Jobim. A voz do neto é muito semelhante à voz do avô. Muito semelhante, mesmo. A genética pode ter destas coisas, de facto.
Se tudo foi de excelência, imagine-se quando as “Águas de Março” se fizeram ouvir. Tão bonito! Uma autêntica “promessa de vida” em cada coração dos muitos que vibraram ao ouvi-la. O mesmo aconteceu com “Desafinado”. Todos cantámos, todos ficámos felizes nesse momento de tempo, nesse imaginário e sonoro retrato feito pela lenta de uma famosa Rolleiflex. E, logo a seguir, “Anos Dourados”. Sequência de sonho na realidade da noite de Oeiras! Mas outras houve a somar às anteriores, como a divina “Eu Sei Que Vou-te Amar”.
Seu Jorge e Daniel Jobim não estiveram sozinhos em palco. Com eles, Sidão Santos, no contrabaixo, e Adriano Trindade, na bateria. Quarteto de luxo! Perante tal alinhamento de canções e de astros, uma sensação surgiu-nos imensas vezes, numa espécie de arrepio interior, a de que “A Felicidade” pode muito bem ser tudo isto, este embalo e este prazer de perpetuar as coisas boas da vida, que podem ser, simplesmente e apenas, canções. Mas chiu, “falem baixo, por favor”, para que a lembrança desse momento dure um pouco mais.
Com dois encores, o concerto terminou com toda a gente a cantar “Chega de Saudade”. A voz que nesses minutos menos se ouviu foi a de Seu Jorge. A comunhão foi perfeita, e a noite terminou num imenso sorriso transatlântico.
Fotografias: Rui Gato