Dos 17 discos de originais editados por Sérgio Godinho (SG) desde 1971, tenho 14. Faltam-me Os amigos de Gaspar, de 88, e os mais recentes Ligação Directa (2006) e Mútuo Constimento (2011). Fui, durante muitos anos, um fã da velha guarda e um “completista”, não descansando enquanto não tivesse toda a sua discografia. Desisti com Lupa, de 2000, que veio confirmar a desinspiração que já vinha se adivinhando algum tempo antes. Ainda assim, tenho um respeito imenso por este senhor, ao ponto de o incluir no Olimpo absoluto de Zeca, Fausto, o Godinho e o Zé Mário (o Palma vem logo logo atrás).
Em tempos em que o preconceito mais mandava, fiquei lixado por ver o Godinho integrar o júri do Chuva de Estrelas, ou lá que raio era aquilo. Mas a verdade é que isso era parvoíce da minha parte, se a música continuasse boa. Infelizmente, não continuava. Também não estava má, mas empalidecia perante o percurso monstruoso que estava lá para trás.
Junte-se a isso a proliferação de Best-of, vários tipos de discos ao vivo (em duetos, em parcerias, ao pé coxinho, etc) e outros projectos, e a sua entrega a uma banda que tem boa vontade mas que não o está a ajudar, enfim, a magia foi-se perdendo sem grande remédio.
Este Caríssimas Canções é mais um desses desvios de carreira, e até nem é dos piores, diga-se. Este projecto iniciou-se em crónicas semanais no Expresso, em que SG escrevia sobre as canções que haviam formado a sua paisagem musical, desde os primeiros tempos, evidenciando um gosto impecável que já se adivinhava, juntando à sua sempre simpática e empática capacidade de comunicação. Seguiram-se espectáculos ao vivo baseados em algumas dessas canções, até que chegou este disco, o documento desses concertos. O reportório é, quase todo, de primeira água. Temos Doors (“People are Strange”), temos Chico (“Geni e o Zepelim”), temos Zeca (“Os Vampiros”), temos Caetano, temos Rolling Stones, enfim. Não tem é “L’anamour”, de Serge Gainsbourg (outro SG), da qual Godinho fez uma boa versão para o grande disco ao vivo Escritor de Canções (este sim, vale muito a pena). Mas temos um original de SG, “A Última Sessão”, que abre o disco, que é o melhor momento de todo o conjunto, embora soe a Godinho a gamar a Godinho do passado.
O resto é SG, apoiado em palco por Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves, dos Clã e já velhos companheiros de Godinho, assim como o fidelíssimo Nuno Rafael, da banda que tem acompanhado o mestre nos últimos anos. O som é despido, e não há aqui grandes reinvenções das músicas. Uma banda sóbria com a voz de Godinho bem à frente, conduzindo tudo. O problema é que nem nós retiramos algo que se assemelhe a uma nova vida das músicas nem isto acrescenta seja o que for ao percurso de Sérgio Godinho. Pior mesmo é vê-lo assassinar algumas músicas em inglês com uma pronúncia abaixo do exigível, ou quando temos de o suportar a cantar com sotaque do Brasil e, várias vezes, a falhar miseravelmente.
Tenho desde há algum tempo uma teoria acerca de SG, e este disco só a vem comprovar. Há mais de 10 anos, desde Domingo no Mundo, de 97, que SG tem vindo a revelar alguma falta de rumo e a forma como tenta responder a isso é através de uma “modernização” do seu som (com malta mais nova na banda e nos arranjos) e numa reciclagem do seu reportório mais antigo. A questão é que, para mim, isto não funciona. Não é por soar moderno e ter guitarra eléctrica em palco ou em disco que vai atrair os putos (estão-se a cagar para ele, naturalmente). E estas novas roupagens – como ele gosta de dizer – vão-lhe servindo de alibi para disfarçar a falta de um sentido e de novas criações que justifiquem o nível muito alto atingido nos anos 70 e 80.
Ele não precisa de modernizar o seu som; ele não precisa de parecer mais jovem para se manter relevante; é exactamente o contrário. Acho que o que o pode trazer de volta à “Champions” dos discos é fazer o que Johnny Cash fez no fim da vida: colocou-se nas mãos de Rick Rubin, que só lhe fez uma exigência, voltar às raízes, despir as músicas, encontrar a sua essência. E isso levou Cash a fazer os melhores discos da sua carreira.
Um dia Godinho deixará de fugir e terá de olhar com atenção para um novo trabalho de originais como deve ser. Se a inspiração lhe faltar, deve esperar, esperar, trabalhar e só editar quando se justificar. E aí, deve voltar às raízes, ao SG que se tornou numa figura absolutamente incontornável da música portuguesa. E eu estarei na linha da frente, a comprar o disco e a aplaudi-lo em espectáculo.
Este Caríssimas Canções permitiu-lhe prestar homenagem ao que o fez; deve ter-se divertido muito com isto; e permitiu-lhe continuar a dar espectáculos, vender discos (?) e manter o nome vivo. Mas, artisticamente, isto é mais um daqueles discos que não acrescentam nada. Para os fãs hardcore é uma boa compra, para meter ao lado de coisas interessantes mas menores como Afinidades ou O Irmão do Meio. Para quem não é fã ou para quem, como eu, é fã mas está farto de o ver perder tempo, é pouco.
Diz SG, ao Público, que “foi um projecto concebido todo ele com muito prazer. Desde o primeiro prazer que originou as crónicas, o de reouvir estas canções”. Sem dúvida, e tudo isso merece respeito (aliás, tudo neste tipo o merece). Mas nem esse prazer sobressai suficientemente no disco, para que o faça valer a pena.
Sérgio: agarra na viola, fecha-te em casa e manda-os todos dar uma curva. E faz-nos amar-te novamente.