Se a música electrónica é tida como matéria fria, no Semibreve aquecemo-nos: um testemunho dos três dias do festival bracarense de música electrónica e arte digital.
Chegou o frio. E com ele, o Semibreve. Ou ao contrário. Ou não há relação nenhuma entre estas duas realidades que partilharam tempo e espaço. Certo é que a primeira vez que senti o frio na pele desde a última Primavera foi em Braga, no primeiro dia do Semibreve, à porta do Theatro Circo. Terá sido culpa da massa polar ou desse mistério que é a música electrónica? Deixo a discussão para os meteorologistas, os musicólogos e os neurologistas.
Que houve diferentes tipos de frio, isso houve. Frios que congelaram, frios que desconcertaram, frios que aqueceram. Frios que nos deixaram tensos e desconfortáveis ou frios reverberantes que nos consolaram.
O frio de William Basinski, que nos deixou suspensos. Suspensos numa incerteza de quem se degladia com a imersão, não conseguindo nela entrar. Escutávamos-lhe as ambiências, mais ou menos sintéticas, mais digitais ou mais analógicas, sempre glaciares na comedida reverberação que o mestre ambiental lhes concedia. A esterilidade dos fundos do teatro, revelados e congelados pelo choque de luz azul com luz branca intensa, puxavam-nos à realidade, num conflito entre visão e audição com vencedor incerto. Nesse limbo pensávamos nos Jardins Efémeros e na Sé de Viseu, em como Basinski nos embalou no choque gélido, em pleno Verão de 2017, entre A Shadow In Time e a pedra gótica que ressoava catedral fora. Aí nos baptizámos, sem questionarmos a nossa Fé um segundo. Em 2018 chegaram-nos as primeiras dúvidas.
O resto da noite permaneceu em questão, fosse na tentativa confusa de Qasim Naqvi em musicar excertos de Kanashimi no Belladonna (1973), filme de animação erótico-psicadélico de Eiichi Yamamoto ou na desilusão que foi o DJ set de Actress (ou a dor do cancelamento de Jlin). Mas RP Boo deu-nos certezas. Certezas de que há um ritmo, lá longe mas que sentimos tão perto, que ainda faz pulsar o coração e as articulações de uma forma singular. Sempre de sorriso rasgado, o produtor de Chicago fez estremecer a Black Box do gnration com as percussões electrónicas concisas, frenéticas e contagiantes do seu muito próprio footwork. “Bang’n On King Dr.”, energético hino de dança de Fingers, Bank Pads & Shoe Prints (2015) ficou como o momento mais memorável da noite.
Acordar em Braga soube bem, de tímpanos descansados*, preparados para o Sabbath. No Salão Medieval da Universidade do Minho, o tempo (ou a percepção dele) parou com Caterina Barbieri. Um coral acompanhado de lentas sequências de cinco notas levou até aos nossos ouvidos a aura daquele lugar, prestes a ser transportado para um tempo incerto. Barbieri levou-nos por campos misteriosos da síntese, que assim que traziam ecos das sequências medievais para o núcleo do seu inconfundível sintetizador, dando-nos uma sugestão temporal, os desfazia por completo e gerava ondas intermináveis de arpeggios vindos de uma época intemporal, com tanto de retro como de futurista. Desafiando as leis da percepção com galopantes oscilações de timbre, altura tonal e reverberação, a compositora italiana tirou-nos o fôlego na revelação electrónica minimalista que nos fazia. Parou-se-nos o pulso no instante em que coros pré-gravados se misturaram com a sua própria voz num canto de sereias vindas de algures entre este e outro mundo. Daí em diante, o transe foi total e ininterrupto. Não saímos os mesmos e a noite não parou de nos fazer viajar.
Estávamos ainda tontos, desorientados, quando Sarah Davachi e Laetitia Morais subiram ao palco do Theatro Circo para um momento de extrospecção. Sinuosas ondas sinusoidais perfuravam tímpanos e alma, numa serenidade aguda que sublimava as filmagens hiper-realistas de rituais religiosos em câmara lenta que Laetitia Morais filmara apenas dias antes, nos longínquos Himalaias, onde as montanhas tocam o céu. Por momentos, pareceu-nos também lá chegar. No final, tudo parecia um sonho do qual tínhamos acordado. Um acordar mais espiritual que físico, com Grouper a prender-nos dentro de nós, num lugar de iluminação muito ténue, uma luz quente tanto visual como sonora. Fomos embalsamados com a delicada e divina providência de Liz Harris, que nos despreparou para o que viria a seguir.
Alfredo Costa Monteiro trouxe ao pequeno auditório do Theatro Circo uma impiedosa electroacústica, com objectos sonoros a serem manipulados no sentido mais físico possível da palavra. Sem recursos de maior no que ao processamento de sinal diz respeito, o portuense residente em Barcelona fez trinta por algumas linhas e molas, puxando-as até nos ensurdecer, fazendo rodopiar motores que as faziam vibrar. Diversas artimanhas estavam dispostas na sua mesa de trabalho, dedicada à exploração das ressonâncias mais improváveis e dos ataques mais violentos aos objectos e aos tímpanos. As melhores massagens são também as mais dolorosas e Costa Monteiro sabe isso. Saímos rejuvenescidos. Seguimos para o gnration, onde as corpulentas batidas da artista sonora SØS Gunver Ryberg fizeram ondular os músculos de forma atípica, bombos intensos de um batimento suave e oval, simultaneamente contidos e explosivos.
Fast forward para a última tarde de festival. A colaboração áudio-visual de Keith Fullerton Whitman e Pierce Warnecke chegou-nos a preto e branco, com o primeiro a dominar os seus módulos de sintetizador numa forma que se passeava por entre os territórios da música ambiental, do minimalismo e do glitch. Pierce Warnecke, a seu lado, fazia reagir os seus vídeos à expressão musical de Whitman, tornando som e luz num só organismo áudio-visível, que nos baralhava os sentidos.
Também de percepção se fez o último espectáculo do festival, sem dúvida o mais singular deles todos. Do alto do camarote do Theatro Circo, vimos Robin Fox construir oceanos de luz que se desfaziam em pequenas partículas de laser, com um som mais eléctrico que electrónico. A interferência, a ausência de sinal, os momentos entre o ligar de uma coluna e o vibrar do cone, todas as frequências perdidas no éter reunidas numa só composição. O laser intimidava e puxava-nos pra dentro de um vortex sono-luminescente de correntes eléctricas e fumo ao mesmo tempo que se dividia em feixes ora estáticos ora supersónicos, compondo uma sinfonia de luz, cor e som. A viagem a um prisma transparente atravessado pela luz encheu as medidas de quem procurava no festival uma verdadeira experiência multimédia e deixou-nos com água na boca. Infelizmente o festival e o dia tinham chegado ao fim, era hora de voltar pra casa e acordar segunda-feira para o recomeçar da rotina.
Agora, o Outono entrou de vez e as camisolas de manga comprida lembram-nos o frio de Braga. Queremos voltar, aconchegados no calor da talha dourada do Theatro, de uma qualquer batida contagiante no gnration ou do simples calor humano que nos envolvia entre os concertos. Se a música electrónica é tida como matéria fria, no Semibreve aquecemo-nos. E não havendo melhor aquecimento que o da música, fica o voto de regresso em 2019.
*Nota de apreciação do facto do festival ter disponíveis tampões para os ouvidos à porta dos concertos.