“I understand the urgency of life.”, assim é prontamente resumida a essência da banda Savages no que é a sua melhor canção até ao presente, “Adore”, a quasi-faixa-título do seu novo disco. Rasgo de personalidade vincadíssima numa banda rock que não se acanha de utilizar as suas algo óbvias influências (olá Joy Division, PiL, Siouxsie) como arma mortífera, a canção ancora-nos à sua catártica purga emocional. Vibrar por vibrar do gordo balofo colossal mas cristalino baixo, enquanto o serpenteante dedilhar da guitarra de Gemma Thompson ecoa reverberando etéreo e discreto nas paredes do nosso crânio, apenas para nossa psique elevar e distorcer na distorção elevada e fulgurante de um refrão certeiro, o abismal exercício de contenção/explosão crê tanto na sua intemporalidade como qualquer cânone de finais de 70/inícios de 80. e em 5 minutos, as Savages deixam de ser uma promessa do post-punk, tornando-se figuras incontornáveis do género para qualquer aficionado ou iniciado. Destruição. Renascença. Urgência.
10 canções, 10 estranhas formas de vida que o amor filtra. “You’ll never understand love. It’s infinite.”, teorizou a cantautora Sharon Van Etten, numa entrevista dada à revista Uncut em 2014. Não obstante a dicotomia entre o som da banda londrina e da cantora/compositora americana, a mesma máxima parece percorrer-lhes a veia lírica. Tão electrizante e destrutivamente como a música que acompanha o seu acutilantemente assombroso vibrato teatral, a voz da banda Jenny Beth oferece-nos dimensões emocionais e físicas do sentimento mais incompreensível de todos de modos particularmente distintos.
O amor como mão opressora invisível comandante à vida suburbana fastidiosa e arrumada (“Stay Catholic/Stay pragmatic”), destruidor de desejo e aventura (“Don’t look at the thighs/Or they’ll poke out your eyes”), em “Evil”. O amor sensorial e momentâneo, escapista e porventura pueril (While on my hands and knees/The corridor was empty/And you were fucking me (…)/And I thought that was new (…)/I need something new (…)”), de “I Need Something New”. O amor como libertação perante as convenções sociais (Pain and pleasure/Will touch my hand/And I will hold/What is untold/About my sex/And about porn”) em “Mechanics”. “O amor pode ser uma das respostas possíveis contra o ódio, o medo, a descrença. Eu sei, parecem só palavras. Mas alguém acredita que o individualismo é a solução?”, confessava a vocalista numa recente entrevista. No primeiro álbum, exigiam silêncio: transmitir-se-iam na desconfiança manifestos ideológicos crus e marciais (até na capa do disco). Agora soam confiantes, não a responder desferindo socos, mas tentando oferecer deferentes respostas de punho erguido. As Savages de 2015 são mais confessionais, mais comunicativas, mais humanas. “Is it human to adore life?” Creio que sim, e tudo isto é simultaneamente adoração e adulação ao amor, por mais perigoso e inflamável que nos soe.
E como soa, então? Gravados os instrumentos em tempos separados ao invés da comunhão da banda numa só sala em jeito de concerto (método de gravação do primeiro disco), a vocalista acredita que “(…) foi interessante ver crescer as canções, experimentar e procurar alguns tipos de som muito particulares que se fossem adaptando ao que desejávamos.” Correctíssimo. Apesar da produção se encontrar uns furos abaixo de Silence Yourself – as guitarras eram mais violentas e viscerais, mais ríspidas e crispadas; em alguns momentos, como no refrão de “Sad Person”, soam mais lamacentas ao fundir-se com a restante instrumentação na explosão pretendida quando se carrega na distorção e tal fica aquém do desejado – Adore Life é fôlego novo para a banda. O baixo de Ay?e Hassan está mais melódico e responsivo aos motivos virulentos, minimais e certeiros das batidas de Fay Milton – ouça-se a ameaçadora death-disco de “Evil”, o saltitar fervilhoso de “Sad Person”, a ambientação desconcertante via desmedida distorção e desalinhamento calculado na excelente “Surrender”.
Os novos horizontes levam-nas a resultados felizes. Os Swans iniciais, dos grooves infernais e da cacofonia punitiva, estão por todo o lado na negríssima “I Need Something New” (faça-se referência ao acapella de Beth no início da faixa, os arrepios que provoca). O passado de Milton como incursa na música de dança parece sentir-se no perturbador plasticismo rítmico de “Surrender”. Na invernenga e agridoce “Slowing Down The World” experimenta-se uma canção a tempo semi-acelarado antes de gritos a levarem para um muito mais amargo inferno sónico. E, porventura, quando se trilha território já familiar, tudo soa fresco, nunca bafiento: “The Answer” é provavelmente o mais bem-oleado e sincronizado massacre elétrico de 2016, com o seu riff circular, vocalizações assombrosas e bateria hiperactiva de ritmos incessantemente sincopados apressados na ânsia de fulminar tudo o que lhes faça frente; “When In Love” não destoaria o ritmo de Silence Yourself – seria talvez das melhores faixas do álbum.
Adore Life é um gigante que tenta, simultaneamente, fazer frente e equiparar-se à existência devastadora, infinita e incompreensível do amor nas suas mil máscaras. Fica a critério do ouvinte qual dos dois prevaleceu. Até lá, álbum vital.