Let’s dance to the song / they’re playin’ on the radio
Como começar o último texto sobre os álbuns mais marcantes de David Bowie? Explicando a escolha. Depois de uma década de 1970 especialmente profícua (não foi apenas a melhor da sua carreira, Bowie está indiscutivelmente entre as maiores figuras dessa década – diria a maior, mas seria muito provavelmente um endeusamento típico post-mortem), Bowie entrou nos 80s melhor do que deles saiu: entendemos, por aqui, que Super Creeps (1980) e este Let’s Dance deveriam fechar este capítulo, que prosseguiria, sempre e invariavelmente, por estreitos caminhos.
E o que tem Let’s Dance de especial? Muito, a começar pelo contexto: é desde logo mais um dos grandes exemplos (e, embora não o melhor, seguramente merecedor de ser destacado) da enorme capacidade de infusão de Bowie, que se soube (quase) sempre apropriar das estéticas e tendências do seu tempo para as tornar maiores. No caso de Let’s Dance, isso sucede: aqui, Bowie apropriou-se da disco para a transformar em algo seu, como sempre o fazia (com maiores ou menores reverências, não custará admitir que foi esse o seu padrão durante a carreira – Bowie soava sempre a Bowie e assemelhava-se sempre a si mesmo, qual criatura estranha que se deixa inspirar sem nunca se deixar contaminar pelos padrões que observava)
Let’s dance for fear / your grace should fall / Let’s dance for fear tonight is all
A história de como abordou o álbum é conhecida. Esse foi o álbum em que rompeu com Tony Visconti, entregando a co-produção a Nile Rodgers (não é, ouvindo o álbum, de estranhar a escolha, e não é difícil perceber a influência). Bowie queria mudar, como sempre quis – mas desta vez seria um ruptura maior. O próprio Nile Rodgers recorda o que Bowie queria:
“A certa altura David chegou com um conceito – tinha uma fotografia do Little Richard vestido com um fato vermelho, a entrar num Cadillac vermelho. Veio ao meu apartamento e disse: “Nile, meu querido, é a isto que quero que o meu álbum soe: aquilo é rock ’n’ roll”.”
Let’s sway you could look into my eyes / Let’s sway under the moonlight / this serious moonlight
O álbum, relativamente curto, em que Bowie não tocaria um único instrumento (seria cantor e, de certa forma, maestro da orquestra que montou (que incluía o próprio Nile Rodgers, Giorgio Moroder – em “Cat People (Putting Out Fire)” – e Stevie Ray Vaughan, entre vários outros) e que soube dirigir, a julgar pelo resultado final, viaja por várias áreas – dos hits mais clássicos, como “Modern Love” (tema enorme) e “Shake It”, a “Criminal World” e a já referida “Cat People (putting Out Fire)”, onde o disco e os solos de Stevie Ray Vaughan dialogam especial e inesperadamente bem,
E há ainda “Ricochet”, onde Bowie (como sempre faz, aliás) mostra a sua capacidade de tornar os temas Bowiescos (é difícil arranjar outro termo – Bowie que soa a tudo mas sobretudo a Bowie seria absurdo, não fosse este ter sido sempre “um outro” em cada álbum, em cada momento, em cada vida, se assim lhe quisermos chamar). Ou “China Girl” (que primeiro apareceu pelas mãos de Iggy Pop, em “The Idiot”). Mas tudo se centra, depois, na canção título.
Put on your red shoes and dance the blues
Quantos mais se atreveriam a fazer um tema “disco” como este que Bowie fez (por o ter feito e o ter feito assim)? Quantos mudaram de pele de forma tão radical, e ainda assim mantendo-se presente, servindo-se de tudo o que quiseram sem preconceito, tornando tudo aquilo que se apropriaram mais grandioso, pessoal, assombroso mesmo em muitos casos? Talvez um apenas, a este nível, pelo menos por essas décadas (as homenagens também lhe virão, como sempre vêm, tarde demais – nos dias em que o mundo acordar com leve vontade de os conhecer, ex-aberrações e ex-judas recuperados, convertidos e trazidos para o panteão de heróis eternos).
Bowie não foi apenas precursor a descobrir minudências ou a desbravar caminhos sectoriais, como hoje muito se advoga (para o poder justificar). Na realidade, Bowie esteve sempre sozinho (mesmo quando o julgámos por perto). E não é exagero pós-morte, sequer elogio: é constatação de que, por variadíssimas razões, nunca o acompanhámos devidamente (nem ele nos deixaria). Let’s Dance foi mais uma peça do puzzle que hoje alguns tentam preencher: e que, por aqui, tentámos apreciar, quase peça a peça. Continuaria, claro, depois de este Let’s Dance, sempre indecifrável, raramente com certezas, multiplicando-se no que não entenderemos. Fica a nota, a melodia, a voz, o assombro: e a certeza que lhe seguimos os agoiros, as previsões e o cepticismo. David Bowie não foi deste mundo? Foi-o muito mais que qualquer outro, e ainda hoje mal o sabemos.