O “Caixodré” castiço, o dos marinheiros à pancada e o das meninas à porta, está a desaparecer. Em seu lugar, fizeram um Cais do Sodré de esferovite, lugar da moda tão respeitável como asséptico. Talvez por isso goste tanto do Sabotage, um clube de rock à séria que honra o espírito underground do bairro original. O Pop penteadinho da última estação não entra na Rua de São Paulo, nº 16 e ainda bem. É aqui que vamos quando queremos curtir rock and roll sujo e selvagem e beber um bom copo de gin. Belo spot para os eborenses Uaninauei fazerem a festa de lançamento do seu novo disco.
Ouvimos Dona Vitória na íntegra e o seu rock musculado foi tão avassalador que uma corda da guitarra de Alexandre Tavares depressa se partiu. Já habituado a estas lides (no concerto no MusicBox acontecera o mesmo!), Alex rapidamente trocou a guitarra e juntou os seus riffs explosivos aos de Zé Lopes e Daniel Catarino, reforçados pela secção rítmica implacável do baterista João Palma e do baixista Yohann Crochet. Percebemos, contudo, uma clara mudança estética em relação ao anterior Lume de Chão. O som é mais acessível, com as suas influências thrash e hardcore agora mais disfarçadas. “Menos Slayer, mais Ornatos Violeta”, resumiríamos numa fórmula. “Nascer, crescer, morrer”, por exemplo, é uma canção perfeitamente susceptível de passar em qualquer estação de rádio de bom gosto. Ao mesmo tempo, a autenticidade do seu rock visceral nunca é comprometida. Essa é – já o percebemos – inegociável.
O concerto abriu com “Assaltos legais”, uma das canções com um ADN tipicamente Uaninauei, pelo flirt discreto que fazem com os cantares alentejanos: uma aliança inesperada entre o rock mais urbano e a afirmação orgulhosa das suas raízes. Catarino brincou aliás várias vezes com o estereótipo das boas gentes do Alentejo. Quando anunciou “Maria Manuela”, ironizou, exagerando o sotaque: “vamos cantar um tema romântico, para não pensarem que somos gente rude do campo”.
Se os holofotes estavam todos virados para o novo disco, há canções antigas que já adquiriram o estatuto de clássicos incontornáveis. “Chamas em mim” – a primeira música escrita pelos Uaninauei na quinta da simpática Dona Vitória-, foi o momento alto da noite, pondo toda a audiência a cantar o seu refrão incendiário. Daniel Catarino, o frontman que transpira carisma e energia, é o principal suspeito do crime de fogo posto perpetrado no Sabotage: ele canta, ele grita, ele toca guitarra que se desunha, ele dramatiza, ele salta frenético do palco para meio do público, ele bebe superbocks como se não houvesse amanhã, ele arregala os seus olhos alucinados como quem acaba de ser possuído pelo próprio “Adamastor” – outro dos clássicos que não ficou esquecido.
O Quarto Fantasma, trio lisboeta de rock instrumental, foi convidado pelos Uaninauei para abrir a festa: laços que se estreitam no lado certo do rock. Daniel Catarino já tinha avisado em “Virgens do descanso”: “dedico esta a’O Quarto Fantasma, uma banda do… cacete”. A formação da banda é invulgar: duas guitarras (cada uma assistida por uma pedal board gigante, denunciando a sua obsessão perfeccionista pela manipulação de texturas sonoras), uma bateria, um teclado com sampler e a invulgar ausência de um baixo e de uma voz.
O seu álbum de estreia, A Sombra, foi o prato principal, mas à sobremesa houve espaço e meio para três inéditos. Foi incrível a precisão com que cada tema foi tocado, uma réplica perfeita das versões de estúdio: só músicos com um talento e um rigor fora do comum são capazes de semelhante feito.
Achei curiosa a absoluta indiferença que O Quarto Fantasma dedicou ao lado entertainment do rock and roll. Eles fizeram a sua cena, como se estivessem na sala de ensaios e não mexeram uma palha para tentar agradar a audiência com outra coisa que não a sua comovente música. Claro que o facto de não terem vocalista – nem ninguém que assuma o lugar de frontman – convida a esta atitude, mas isso não explica tudo. Talvez seja mesmo um statement, como se quisessem deixar bem claro que a sua música vale por si mesma, não precisando de qualquer marketing de palco para a vender. O que é certo é que o público gostou. Quando o produto é bom, compramo-lo, mesmo sem publicidade.
O concerto acabou já de madrugada. Voltei para casa junto ao rio, com o vento a cortar-me a cara e as músicas ainda na cabeça. Senti-me vivo. Como o rock português.
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(Fotos: Mário Romano)
Alinhamento
O Quarto Fantasma
1- A grande dúvida
2- A rumar
3- Parábola
4- Elegia
5- Meia voz (*)
6- Espaço e meio
7- Arder
8- Vaga (*)
9- (Inédito sem título)
*A editar em breve num novo registo.
Uaninauei
1- Assaltos legais
2- Guilhotina
3- Gémeo mau
4- Aldeia sem taberna
5- Limites do Juízo
6- Virgem do descanso
7- Chamas em mim
8- Nascer, crescer, morrer
9- Adamastor
10- Cabeça de motor
11- Maria Manuela
12- Betoneira (vida do mal)