Lisboa nunca toma duas vezes banho no mesmo Tejo. Tentamos prendê-la numa foto mas ela, esquiva, foge sempre e no instagram seguinte já não é exactamente a mesma. Veja-se o caso do Largo do Intendente: primeiro, bairro chique da burguesia, com as suas sobranceiras casas apalaçadas; depois, antro de marginais e desvalidos, onde a “gente de bem” nem sequer se atrevia a entrar; e agora, bairro da moda outra vez, jovem, cosmopolita, multiétnico, borbulhando de cultura e boémia por todos os seus recantos.
O seu centro nevrálgico é a Casa Independente, velho palacete agora reconvertido num dos espaços culturais mais interessantes da cidade. A decoração é uma obra-prima do kitsch: o icónico tigre pintado na parede, as parreiras típicas portuguesas imitadas em plástico, os candelabros de bordéis dos anos 20, as paredes orgulhosamente em ruínas. Sem desprimor por todas essas delícias, o mobiliário mais interessante dá pelo nome de They’re Heading West (THW), prata da casa desde Janeiro de 2013, com os seus já míticos concertos mensais, sempre com ilustres convidados na bagagem: JP Simões, Bruno Pernadas, Walter Benjamin, Mazgani e You Can’t Win Charlie Brown são apenas alguns dos nomes que nos vêm à cabeça; a lista de colaborações é demasiado extensa para caber no cubículo deste texto. Sublinhamos apenas que se há uma palavra-chave que define esta banda é justamente «comunidade», tal é a facilidade com que estabelecem cumplicidades com outros músicos portugueses, vindos dos mais díspares quadrantes.
Para os mais distraídos, aqui fica uma rápida pincelada de quem eles são: Francisca Cortesão (voz, baixo e guitarra) e Mariana Ricardo (voz, ukulele) vêm dos Minta & the Brook Trout; João Correia (voz, baixo e guitarra) vem dos Julie & the Carjackers e dos Tape Junk; e o baterista Sérgio Nascimento já tocou com meio mundo, desde os Humanos ao Sérgio Godinho, passando pelo David Fonseca e os Deolinda.
Mas há algo de curioso na história e identidade deste gangue. Antes de serem uma banda propriamente dita, os THW foram, primeiro de tudo, um grupo de amigos unidos por um sonho: ir estrada fora rumo ao oeste americano (sim, malta, acreditem nos vossos sonhos, por mais quixotescos que vos possam parecer: concerto a concerto, moedinha a moedinha, os THW já levam duas digressões americanas no papo). Mas como tantas vezes acontece na vida, o que primeiro começou por ser quase uma brincadeira, foi com o tempo tornando-se coisa séria. A brincar, a brincar, já cá cantam dois EPs, um contrato com a editora mais cool do momento e o álbum de estreia já em gravação, que a Pataca Discos prevê sair ainda este ano.
Mas deixemo-nos de “wikipidices” e vamos directo ao assunto que nos trouxe aqui: a crónica do grande concerto que os THW deram na matiné deste domingo, com dois convidados muito especiais: Gui (o mítico saxofonista dos Xutos) e o Camané – apenas e somente a maior voz portuguesa viva.
Comecemos por elogiar a ideia de matiné. O fascismo da noite que vá para o diabo que o carregue, que as outras horas também têm direito a existir. Que bom o concerto ter começado às seis da tarde, com a sala cheia de gente de todas as idades, com alguma pequenada dançando feliz, miúdos que vão crescer com os horizontes mais abertos, educando o gosto, torcendo o pepino.
Depois, maravilhamo-nos com a simplicidade desta quadrilha lisboeta, sem o mais remoto laivo de vedetismo, espontâneos, despretensiosos e intimistas, como se estivéssemos todos num ensaio descontraído na sua casa, descalços, pés no sofá e uma caneca de cevada quente a aquecer-nos as mãos.
Agrada-nos também o contraste entre o seu som acústico (harmonias vocais delicadas, o som doce do ukulele, a mini-bateria nitidamente roubada ao filho de alguém, a guitarra acústica quase sempre serena) com um baixo eléctrico cheio de groove à Kim Deal, que nos dá logo vontade de abanar as ancas e partir os candelabros vintage.
A primeira parte do concerto foi todo ele dedicado ao reportório habitual dos THW, o que também inclui canções de alguns dos seus projectos paralelos (Minta & the Brook Trout e Tape Junk). As vozes principais ficam normalmente a cargo dos autores de cada canção, saltitando da Francisca para o João, do João para a Mariana, da Mariana para a Francisca, trocas e baldrocas que só trazem frescura ao espectáculo. Destacamos a encantadora «Blood and Bones», com o seu loop viciante que se gruda instantaneamente aos ouvidos, e também o pretexto para entrar o primeiro convidado: o melancólico saxofone do Gui.
A segunda parte do concerto é marcada pela entrada do segundo convidado, um tal de Camané, que é simplesmente o maior fadista português desde que a Amália nos deixou. O reportório fugiu aos fados e centrou-se nos clássicos da pop portuguesa, do Godinho aos Xutos, dos Ornatos ao Variações. Mesmo estando Camané fora da sua zona de conforto (a pop e o fado são linguagens completamente distintas), a sua voz imensa não pôde deixar de nos emocionar. Destacamos «Adeus que me vou Embora», que Camané já conhecia bem da sua temporada nos Humanos. Trata-se da canção-testamento do António Variações e uma das mais belas canções pop escritas em português. Variações tem já perfeita consciência de que está prestes a morrer, vai-se despedindo das pessoas que ama, apazigua-se com os seus fantasmas, desiste de lutar, dizendo adeus à maravilha que foi a sua curta e intensa vida, e aceitando triste mas sereno, com a dignidade que sempre o caracterizou, a sua irreversível partida. Que me perdoem os vigilantes mais puritanos dos códigos da virilidade, mas uma letra tão triste e bela, cantada por uma voz tão bela e triste, fez um homem chorar.
Claro que quando os convidados saíram de palco, e o concerto retomou o modo They’re Heading West normal, Francisca Cortesão, com o humor que a caracteriza, não pôde deixar de desabafar: «Calhou-me a mim cantar depois do Camané. Não é justo.» Humildade excessiva da Francisca, já que o lote de canções de originais que se seguiram foram de novo de primeiríssima água.
No fim, naturalmente, o público reclamou o mais do que justo encore e um novo momento mágico aconteceu. Camané entra e canta o único fado da noite: «Abandono», um clássico da Amália com música de Alain Oulman e letra de David Mourão-Ferreira. Para os maniqueístas primários que sempre tentaram encostar a Amália ao Estado Novo e proscrevê-la depois do 25 de Abril, é bom lembrar que este lindíssimo fado retrata a dor de uma mulher cujo homem que ama foi “levado a meio da noite”, e que por isso ficou conhecido por «Fado Peniche», em referência à sinistra prisão que tantos amores apartou. E agora, que Camané está por fim na sua praia, o seu amado fado, supera em sentimento e subtileza as canções anteriores que nós já julgávamos perfeitas.
O encore acaba com a repetição das duas canções do Variações/Humanos, desta vez cantadas em uníssono com um público transbordante de alegria.
Um espectáculo maravilhoso, feito de lindíssimas canções e afectuosas cumplicidades. Esta química que os THW conseguem partilhar com os seus convidados torna estes concertos sempre únicos e irrepetíveis.
Em Março voltaremos a ver os They’re Heading West na Casa Independente.
A magia voltará.
Fotos: Margarida Moita dos Santos
Alinhamento
Old Habits
Me and My Gin
Some Spanish Girls
Blood and Bones
Large Amounts
As Certezas do Meu Mais Brilhante Amor (Sérgio Godinho)
Adeus que me Vou Embora (António Variações)
Ouvi Dizer (Ornatos Violeta)
Conta-me Histórias (Xutos)
Quero é Viver (António Variações)
A Song to Celebrate Our Love
November
Well
Encore
Abandono (Alain Oulman, David Mourão-Ferreira)
Adeus que me Vou Embora (António Variações)
Quero é Viver (António Variações)