Ramos aguçados, ameaçadores, que cobrem trilhos de terra e lama. Vento frio que uiva ao soltar-se dos ramos que o tentam travar. Escuro. Humidade que se mistura com os cheiros a restos de animais e água parada.
A floresta pode ser um local assim: assustador, despido de qualquer coisa que nos conforte, que nos aqueça. Por entre o desespero de nos sentirmos perdidos entre troncos e folhas, e o medo do selvagem que cada vez mais nos é distante, a floresta torna-se uma caixinha onde guardamos tudo aquilo que nos assusta.
O Sol atravessa o orvalho da manhã e novas cores iluminam o nosso caminho. A fogueira que nos aquece a alma já crepita enquanto somos embalados pelo som dos pássaros que vão fazendo ramos ficar mais pesados. O barulho das folhas secas que nos aconchegam os pés, fazem as fantasias de quem imagina longas viagens pelo desconhecido. A água a correr limpa o medo que este sítio pode trazer. Tudo fica bem. Tudo sabe bem.
Neste misto de sons que agasalham as nossas mãos e o nosso espírito, encontramos uma luz quente, confortável, que com doçura faz com que o escuro se evapore. Se torne um sonho mau. Os Guta Naki fazem este som.
Afastando com um sorriso e uns acordes a imagem escura daquilo que as árvores podem ser, a sua música é a cabana de lume aceso que nos acolhe, é a tenda com o saco cama confortável onde podemos descansar.
Estivemos à conversa com eles, rodeados de muita outra boa música que a Louie Louie tantas vezes nos dá, e fomos saber mais sobre o seu novo trabalho, Perto Como. Numa conversa surpreendente e familiar, mostraram tudo aquilo que acabei de descrever. Mostraram que a humildade e o talento fazem da música o casaco quente que nos deixa ansiosos pelo primeiro frio de dezembro.
Por entre “barzecos”, natureza e tropicalismo fomos sem medo, conhecer o que tinham para nos mostrar.
Altamont: Como descrevem os “Guta Naki”? Como nasceu o projeto?
Dinis: Nós antes já tínhamos projetos e já nos conhecíamos há muito tempo… depois houve uma altura que achamos que estávamos no momento certo para começarmos a fazer mais coisas como grupo e a música depois foi nos empurrando até aqui.
E conseguem destacar um ponto ou um momento onde se aperceberam “Espera lá, isto até tem pernas para andar”?
Nós começamos a compor as músicas, a escrever as canções, sem ter a ideia de fazer um disco. Não tínhamos editora, não tínhamos nada, queríamos mesmo só fazê-las para tocar ao vivo. Depois a dada altura recebemos um contacto da nossa editora atual, a Meifumado e, apesar de já andarmos a tocar, etc., a coisa começou a tornar-se um bocadinho mais séria e achamos que estávamos a tornar-nos num projeto consistente.
E em relação a essa mesma fase de transição entre não ter nada e passar a ter editoras e representações e tudo isso… em jeito de dica para quem esteja precisamente à espera desse salto, como é que a coisa se processa?
Bem o nosso não foi uma coisa muito natural, ainda foi no tempo do Myspace… um dia a Cátia, a vocalista, enviou para a página da Meifumado um poema do Cummings sobre editoras, até começa com” Let’s Start a Publishing House”, isso chamou-lhes à atenção, eles ouviram-nos, gostaram e contactaram-nos. Vieram assistir a um ensaio e pronto, a coisa deu-se.
Então pode-se dizer que é um bocado um golpe de sorte, não?
É sim, mas também é preciso ser bom, ter qualidade, como é óbvio. A Meifumado teve de ver qualidade em nós para seguir em frente, não bastava um poema…
E agora para uma pergunta que já vos fizeram várias vezes, com certeza, mas que é sempre útil para recordar: o que significa Guta Naki?
É simples: a Cátia tem uma gata que é a Guta, o Nuno tinha uma cadela que era a Naki e como elas assistiam sempre aos nossos ensaios e reuniões, quando ainda os fazíamos em casa e tudo, achamos que dar o nome delas à banda era uma forma de as honrar, afinal foram as nossas primeiras fãs. Achamos que até tinha uma sonoridade engraçada, parece quase japonês…
Eu estive a ouvir-vos bastante tempo antes desta entrevista, mas continuo sem conseguir enquadrar-vos num estilo específico…
Isso é bom, isso é bom.
Claro, mas mesmo assim, vocês sentem que pendem mais para que género musical?
Eu não consigo mesmo responder a isso, nós gostamos muito de experimentar, ouvimos muitas coisas novas e acho que isso torna quase natural esta impossibilidade de padronização. O tema faz o estilo e, pelo facto de ouvirmos muita coisa, fica difícil colarmo-nos a uma coisa só.
Vocês até têm, na vossa página do Facebook, uma descrição meio desconstruída daquilo que são. Afirmam que são a “memória tresmalhada entre o que se ouve e olha, entre o que se lê e escreve.” Partindo daí, podemos dizer que a vossa música é muito pessoal, muito ligada a experiências vividas de perto, memórias antigas?
Sim, acho que tudo pode inspirar, e acho que isso no processo artístico acaba por ser natural. Nós não somos pessoas de dizer que vamos começar este ou aquele projeto já com a ideia de ir fazer hip-hop, ou outro género que seja. Nós vamos criando consoante aquilo que lemos, ouvimos…
É engraçado falares da influência da leitura no vosso processo criativo… Dentro daquilo que é a cultura, onde vivem géneros como, lá está, a literatura, ou o cinema, por exemplo. A primeira faixa do vosso novo trabalho, o Perto Como, começa com um sample de um filme do Jean Jacques Annaud, “A Guerra do Fogo”, e isso mostra que a música não é impermeável a outros campos da cultura. Agora, acham que a música enriquece quando olha para esses mesmos campos para se inspirar ou é mais proveitoso quando se foca só em sí?
Concordo sim. Nesse caso específico que mencionaste, o sample, não foi escolhido ao acaso. A parte do filme que usamos é uma em que a Ika, que é uma Homo Sapiens, começa a rir, quando está com os Neandertais. Eles não sabiam o que era rir, era estranhíssimo para eles, mas para ela não: bastou uma pedra bater na cabeça de um para soltar uma gargalhada. E não é ao acaso, lá está, porque um dos temas fortes das nossas letras é a questão da herança. Como chegamos aqui, uma certa linhagem, e obviamente nós chegamos aqui hoje através dos Homo Sapiens…
Vocês também têm na vossa página de Facebook, uma frase que me interessou muito: “Na ideia nada de dizível”. O que tiro desta frase é que começaram a fazer música em grupo só pelo prazer de a fazer, nada mais. Acham que isso é a receita para o sucesso? Fazer música só pelo prazer de a fazer?
Não acho que haja receitas para o sucesso: o Eugénio de Andrade até dizia uma frase muito engraçada “ o sucesso é para as coristas”. Obviamente que nós, sendo pessoas que se interessam na arte pela arte, queremos que ela seja ouvida, mas não queremos fazer música simplesmente para as pessoas gostarem. Queremos mexer com elas, fazê-las pensar, não gostamos de ser óbvios precisamente por isso e também porque nós próprios não somos óbvios, logo isso terá que se refletir na nossa música.
Então acham mais importante o papel do artista, do músico, criar primeiro para o público e depois para ele ou o contrário?
Acho que começa sempre com um ato solitário, mas qualquer artista deve ter noção de que faz arte para mostrar e isso foi uma coisa que acho diferente comparando o nosso primeiro álbum com o segundo, por acaso. Nós não tínhamos ainda noção de que aquilo ia ser um disco e que íamos tocar ao vivo (demos imensos concertos). Neste novo passamos a não pensar sempre, diretamente no público, mas mais no espetáculo ao vivo, por exemplo…
E agora para falar precisamente sobre esse vosso novo trabalho, o Perto Como, como o descreveriam?
Essa pergunta é complicada (risos)… Antes de mais queremos que as pessoas o ouçam e que gostem dele. Mas acho que posso falar mais deste novo trabalho, comparando-o com o anterior: é um álbum mais orgânico, temos muito mais bateria, já não somos tão eletrónicos. A Cátia começou a tocar guitarra, o que também dá um corpo mais quente…
Tropical, talvez?
Sim, alguns laivos de tropicalismo brasileiro, que ouvimos muito durante o processo de construção do álbum. Acho que estamos também mais contidos, menos dramáticos. O outro álbum tinha uma carga mais dramática, tanto na letra como na sonoridade… De um modo geral, acho que é um álbum mais adulto. Mas agora vamos é querer saber o que os outros acham! (risos)
Já que, há bocado, falámos de influências, que artistas conseguem apontar como aqueles que mais podemos sentir na vossa música?
Não sei, acho que cada um terá a sua resposta. Posso dizer o que ouvi durante o tempo de composição do álbum, por exemplo. Ouvi desde a parte óbvia do tropicalismo a coisas mais próximas do hip-hop como Thundercat, Flying Lotus… não é bem hip-hop mas pronto… Também ouvi muito Mars Volta, que não é nada óbvio, nem nos baixos que faço, nem depois no resto da música. Essa é sempre uma pergunta complicada de responder porque ouvimos sempre imensa coisa.
Recentemente lançaram um videoclip, que até foi referenciado no P3. Qual é que acham ser o papel do vídeo, hoje em dia, na promoção de um artista ou uma banda?
Acho que desde os finais dos anos 80, o vídeo tem ganho mais e mais importância. Hoje em dia, acho que tornou-se uma questão essencial. As pessoas agora têm suportes para ver vídeos em qualquer sítio. Acho também que é preciso encontrar novas linguagens… Eu por exemplo não gosto de vídeos muito óbvios, daqueles que se na letra é dito “mesa”, aparece uma imagem de uma mesa. Não gosto muito disso.
Vocês estão a entrar na fase de promoção do vosso álbum, a tocar em vários sítios: dos maiores aos mais pequenos. Partindo dessa realidade, acham que os Guta Naki são mais uma banda de grandes salas ou de bares mais pequeninos?
Nós gostamos acima de tudo, de tocar. Já demos grandes concertos em bares pequenos, nós até lhe chamamos os “barzecos” (risos), onde a proximidade com o público é ótima (tanto durante o concerto como depois), mas nas salas grandes, já conseguimos ter um concerto com uma sonoridade muito melhor. Sentimo-nos muito confortáveis em ambos os sítios, na verdade.
E agora a nível pessoal, o que vos dá mais gozo: a proximidade com o público, no bar pequeno, ou a qualidade do som, na sala grande?
Acho que pondo as duas coisas numa balança, elas ficam equilibradas. Todos têm prós e contras… Já demos concertos que não gostamos nada num e noutro tipo de locais, e bons também em ambos, por isso acho que fica “ela-por-ela”.
E parcerias com outros músicos? Têm alguém com quem gostariam muito de trabalhar? Pensaram nisso alguma vez?
Já, já pensámos nisso, mas não temos ninguém em concreto. Há tanta gente com quem gostaríamos de trabalhar! É quase impossível dizer só uma ou duas. Mas uma coisa posso dizer: vamos trabalhar num projeto que envolve músicas do José Mário Branco, lá para Abril. Não é bem um a parceria, mas vamos fazer versões de algumas músicas dele.
Cátia: Olá! Desculpem! (acabou de chegar) Atrasei-me imenso!
(risos)
Dinis: Não te preocupes que ele depois põe na entrevista “Cátia acabou de chegar” seguido de um “(risos)”.
(risos)
C: Alguém deixou aqui um Dante (mencionando um exemplar da Divina Comédia que estava em cima da mesa onde esta entrevista se realizou)! Têm um excerto ótimo para caracterizar este novo cd! “A meio do caminho da nossa vida, achei-me numa selva tenebrosa”… estão a ver, já citei Dante para falar da capa do Perto Como! (risos)
Bem, nós estávamos no fim, mas posso-te fazer algumas das que fiz só ao Dinis e deixo a última para responderem em conjunto! Então Cátia, como é que tu vês o vosso novo álbum? Como o caracterizarias, ou o que achas que está mais diferente em relação ao anterior?
C: Acho que em comparação ao anterior, ele forma mais uma unidade. O outro era mais uma série de canções que íamos fazendo e depois compilando no álbum, este é mais completo, “um todo”. Uma coisa que me inspirou muito neste foi arranjar samples de coisas que gostava para inserirmos nas músicas, coisa que não acontecia tanto no anterior.
Nem de propósito, essa ideia cruza-se com uma pergunta que fiz ao Dinis, onde perguntei se achavam que a música, quando vai para lá de si e absorve influências de outras áreas da cultura, fica mais rica. É uma mais-valia?
C: Eu não sei se usaria a expressão enriquecer… É, sim, uma forma de a fazer. Eu, pensando no nosso caso, acho que é a nossa forma de fazer música, isto de ir buscar referências a livros ou filmes. Nunca nada aparece do nada, e as coisas contaminam-se sempre. No nosso caso, essa “contaminação” sente-se muito.
Tinha perguntado também ao Dinis se os Guta Naki preferiam mais tocar em salas grandes ou bares pequeninos…
C: O que é que ele disse? Barecos? (risos) Eu gosto dos sítios mais íntimos, daquela sensação de teres as pessoas mais próximas de ti, mas eu gosto mesmo é de tocar, seja onde for!
Falando de lançamentos do ano passado e olhando já para este 2014, quais destacarias e quais te deixam mais ansiosa por ouvir?
C: Enquanto estivemos a fazer este disco (sim, porque não gosto de pensar em anos, mas sim em discos (risos) ) acho que não ouvi muita coisa nova. Ouvi os Shabazz Palaces, ouvi muito também o primeiro disco da Erykah Badu, por exemplo. Vou tentando estar atenta às coisas que se fazem cá, também, há muita coisa que me interessa. Nós como grupo, não estamos muito presos “à novidade”, há tanta coisa sempre a sair…
D: É avassalador, quase!
C: E é interessante porque se tu tiveres, na minha opinião, na minha experiência, demasiado atenta a querer saber tudo, conhecer tudo, acabas por não conseguir fazer nada por ti.
D: Isso é trabalho para os radialistas e para vocês! (risos)
E com quem gostarias e partilhar um palco, Cátia?
C: Que pergunta tão difícil! Horrível essa pergunta! (risos) Um que eu gostava de fazer, e vou obriga-lo a fazer, se for preciso, é com o Samuel Úria. Vai ser obrigado a fazer um dueto comigo! Aponta aí! (risos)
Bem, agora que já deu para ouvir um bocadinho daquilo que a Cátia tinha para dizer, acho que vos posso fazer a clássica pergunta de fim de entrevista: Novidades para breve?
D: Concertos e gostávamos de gravar também uma coisa que fizemos para a comemoração dos 120 anos do Almada Negreiros, mas por agora não temos novidades sobre isso.
C: E começar a compor mais uma vez!
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(Fotos: Hugo Amaral // Agradecimentos à Louie Louie pela disponibilização do espaço)