
Há concertos feitos para um alinhamento enumerado, onde constam canções com principio, meio e fim. O artista interage com os habituais “já não venho a Lisboa há muito tempo. Obrigado por virem” e, no fim, talvez haja um encore com aquela canção que todos conhecem. Qualquer prego é incomodativo e, claro, o som está a um nível mínimamente saudável. O público celebra o espetáculo de olhos abertos, entoando refrões orelhudos e batendo palmas em sincronização com o bombo da bateria. No passado sábado, dia 27 de fevereiro, um lotado Musicbox celebrou o seu 10º aniversário d’outra forma: com barulho, instrospeção e força bruta. As canções foram transformadas em desconstruções, os olhos fecharam-se, os corpos petrificaram-se, tremendo apenas com os volumes exagerados e os respetivos sobretons. As interações artista-audiência foram diminutas. Afinal, estávamos num festival de drone.
A pergunta que se colocou foi: quais são os limites de um acorde? Stephen O’Malley, cofundador dos lendários Sunn O)), especialista na arte de bem tocar alto, respondeu. À entrada, para que a lição barulhenta fosse segura para a audiência, foram entregues um par de tampões para os ouvidos amarelos. Já no recinto, uma imponente muralha de amplificação, composta por 5 cabinets gigantes, assustou as orelhas de todos. No chão estava um pedalboard cheio de loops, reverbs, tape delays e uma engenhoca, adorada por O’Malley, chamada Phase Wizard – esta permite-lhe ligar uma guitarra a 4 canais em simultâneo, controlando o phase de cada canal a seu gosto, ou seja, qualquer acorde tocado será enviado para cada amplificador com tonalidades diferentes. Apesar de não estar à vista o venerado Model T da Sunns, que deu nome à alma mater de O’Malley, tudo estava preparado.
Para abrir as hostes, acomodando a nossa audição a altas frequências, Filipe Felizardo, o Paulo Furtado do Drone, sobe ao palco. Raivoso de expressão e ruidoso na guitarra, Felizardo colocou-nos em modo centrifugação, tocando o seu mais recente Volume IV – The Invading Past and Other Dissolutions (2016). Mais distorcida do que em trabalhos anteriores, a guitarra que acompanha Felizardo é dedilhada à moda de Norberto Lobo, com progressões de Legendary Tigerman, mas submergida em atmosferas que só Felizardo sabe fazer. Apesar de ser suportável ouvi-lo sem tampões, o português fez o Musicbox estremecer durante 40 minutos. Quando não estava a esmurrar a guitarra com um anel ou a criar feedback, encostando o seu instrumento ao pequeno (mas ruidoso) amplificador vintage que o acompanhou, Felizardo aproveitava para fazer o que melhor faz: dedilhar frases bonitas e melancólicas. Se não tivesse tanta distorção, talvez essa faceta brilhante de Felizardo tivesse sido mais acentuada, aliando o barulho ao sentimento.
23h43. Era hora da lição começar. Após a viagem guiada por Moínho da Fonte Santa, Stephen O’Malley apontava para outra localização, desta vez mais a norte. As luzes desligaram-se, para pesadelo dos fotógrafos, e paisagens típicas de Europa do Norte começaram a ser acompanhadas por um barulho ensurdecedor, para o sonho da audiência. O’Malley entra, envergando uma tshirt do crucial disco de estreia dos Darkthrone, A Blaze in the Northern Sky (1992), e demora 10 minutos a ligar o seu arsenal de amplificação. Liga os pedais, que projetavam a única luz a iluminar o artista, e pega na sua guitarra que, durante pelo menos 15 minutos, arranham o mesmo acorde – sem camadas, nem aditivos.
Com toda a ousadia, escrevo na primeira pessoa: nunca vi nada assim. Da cabeça aos pés, passando pelas minhas entranhas, até ao objetos que guardava no bolso: tudo tremia. Se, de facto, existir uma Brown Note, uma frequência que nos faz perder o controlo intestinal, ou seja, borrando-nos todos, é por aqui que lá se chegará. A sua existência em frequências muito baixas já foi desmentida, mas e se for a frequências muito altas, tal como um episódio da Fur TV? Talvez a intensidade da guitarra de O’Malley seja o caminho.
Durante uma hora, sempre na base do acorde que iniciou o concerto, o timoneiro dos Sunn O)) tocava por cima elementos dissonantes que, camada após camada, ajudavam à jarda. Escondido, do lado direito dos amplificadores, para não estorvar o barulho que vinha dos amplificadores, o música ia também apreciando o som, bebendo o seu copo de vinho e descansando de vez em quando. Pelas 00h43, à medida que O’Malley desligava cada amplificador, o barulho desvaneceu-se. Acabou a lição.
1h14. A noite já ia longa, o prato principal já tinha sido servido, mas o Musicbox permaneceu lotado. “Agora é que vai ser partir pescoço”, ouvia-se algures no Musicbox. Após a viagem ao norte da Europa, estava na altura de voltar para Portugal, mais precisamente a Évora. Os Process of Guilt, o ponto máximo do doom nacional, fecharam uma noite barulhenta com canções, agora sim canções, igualmente pesadas. Muito amados por cá e por lá, o quinteto tocou canções de Faemin (2013) que, como se pôde comprovar, ainda faz rolar cabeças. Cavalgando com os guturais de Hugo Santos pelo negrume atmosférico, entre pitch harmonics e breakdowns, os Process of Guilt ofereceram-nos a oportunidade perfeita para explodir toda a energia acumulada nos dois concertos anteriores. Há novo álbum na calha e este pode ser o ano deles. Pelo menos, aquela noite, foi nossa.
Fotos: Francisco Fidalgo