Há homens famintos por criar. Quando esse apetite se cruza com talento, história costuma acontecer – de uma maneira ou de outra. Nesse subgrupo, no que toca à música, está o multifacetado instrumentista norte-americano Toby Driver. Entre os mais de 10 projetos onde está/esteve envolvido, sendo Kayo Dot e maudlin of the Well os mais populares, o incansável (e experimental) Driver tem vindo a expandir os limites da música, explorando os pontos de ligação existentes em géneros distintos – que vão do black metal à música barroca, passando pelo lado mais avant-garde e solto do jazz. Após Choirs of the Eye (2003), disco de estreia dos Kayo Dot que chamou a atenção do lendário saxofonista John Zorn – este fez questão de os assinar prontamente pela prestigiosa Tzadik, a sua editora -, Driver tem vindo a adquirir um estatuto de culto, especialmente no EUA e na Europa central. Portugal não foi exceção e, em 2009, os Kayo Dot foram calorosamente recebidos no Passos Manuel. 7 anos depois, desta vez em nome próprio, o timoneiro dos Kayo Dot regressou a Portugal, passando por Lisboa no passado dia 23 de fevereiro.
Mas Lisboa, essa ingrata capital, decidiu não aparecer. Terá sido pela inconveniência laboral, típica de uma terça-feira de fevereiro? Ou terá sido por ignorância? A verdade é que Driver, perante um Musicbox composto por pouco mais de 20 pessoas, não falhou com o seu compromisso. O nome da digressão, European Ballads, e as mesas e cadeiras colocadas pelo recinto não enganavam: a serenidade (e solenidade) do concerto foi pensada para gente sentada.
Durante uma hora, acompanhado pelo baterista Keith Abrams (também Kayo Dot), Toby Driver embrulhou-nos na sua dark folk e deu a conhecer uma faceta sua menos irrequieta (mas igualmente intensa e emocional). Os temas, quase todos eles desconhecidos ao público – visto que serão lançados apenas em setembro -, embalaram o diminuto público que, apesar de tímido, aplaudia e estremecia. Os únicos berros de entusiasmo apareceram em “Avignon“, canção próximo álbum já divulgada. E não se pedia mais: este concerto foi feito para silêncios, olhos fechados e sentimentos de melancolia. Etéreos e introspectivos, os dedilhados de guitarra eram acompanhados por uma bateria viciada em contratempos e pela assombrosa voz reverberada de Driver, provando que não só de growls é feito o músico norte-americano. A cereja no topo do bolo encontrava-se do lado direito de Driver: um computador que lançava subtis camadas de sintetizador.
Antes de Driver, também Nick Hudson trouxe música nova. Hudson, mestre do piano de cauda, só se fez acompanhar por uma guitarra. De boina e uma ligeira boa disposição misturada com nervosismo, o artista britânico convenceu com as suas canções, também dedilhadas e com progressões inesperadas, retirando os primeiros aplausos. Apesar de desconhecido pela maioria, alguns reconheceram as canções de guitarra que marcaram o seu disco mais recente, Letters To The Dead (2013).
De facto, estavam lá pouco mais de 20 pessoas. De facto, foi numa terça-feira à noite. De facto, é injusto um músico tão talentoso como Driver ser o custo de oportunidade de tantos melómanos lisboetas. Mas essas 20 pessoas tiveram a chance de assistirem a história a ser escrita. A história de alguém que, numa época onde já tudo foi inventado, decidiu não se conformar e, contra tudo e contra todos, trilhou novos caminhos para a música. Nunca nos esqueçamos do que aconteceu no concerto dos Sex Pistols em Lesser Free Trade Hall, em junho de 1976. Estavam lá apenas entre 35 a 40 pessoas. Apesar de só terem entrado umas dezenas de pessoas, daquele recinto sairam duas décadas de música. “Create for the sake of creation”.
Fotografias: Filipa Leite