
Existem momentos que são definitivos no desenvolvimento de nós mesmo como seres humanos: o primeiro beijo, o primeiro desgosto amoroso ou a primeira vez que lemos o livro que nos muda a vida. Um desses momentos definitivos para mim, aconteceu com o primeiro concerto que vi do Sérgio Godinho, dia 22 de Novembro de 2014, no Coliseu.
A minha relação com o Sérgio remonta a quando eu tinha uns quatro anos e o meu pai tinha no carro uma cassete que celebrava os 25 anos do Expresso, com músicas icónicas de músicos Portugueses. Havia músicas do Zeca, do Carlos Paião, GNR, Palma, Madredeus e também lá figurava a música «O Primeiro Dia» do Sérgio Godinho. Vezes e vezes ouvimos a cassete e de tanto a ouvir ela estragou-se, o que levou a que o meu pai comprasse o CD que ainda hoje guardo religiosamente em casa.
Aquela cassete serviu como a minha primeira conquista na cruzada que é conhecer a discografia do Sérgio Godinho e que atingiu um novo ponto fulcral no sábado à noite.
Como qualquer um que está prestes a cumprir um objectivo há já muito traçado, a ânsia era grande. Quando cheguei ao meu lugar olhei para o palco, onde apenas se podia ler, a letras grandes vermelhas, LIBERDADE – o nome do espectáculo e uma palavra à qual rapidamente associamos o dono do concerto que se seguiria.
O concerto abriu com apenas a banda de Sérgio em palco, com luzes vermelhas e pretas a incidir sobre os músicos. Depois uma pequena figura marchou em direcção ao microfone e começou a cantar «Diz-me lá como foi/Diz-me lá que dia foi/Foi aos 25 dias de Abril». Godinho escolheu abrir o espectáculo com uma música sobre um dos dias mais importantes para Portugal e certamente um dos dias mais importantes para o músico que pôde finalmente sair do exílio em que se encontrava desde 1965. Depois de uma versão mais eléctrica de «Já Joguei ao Boxe, Já Toquei Bateria», Sérgio agradeceu pela presença dos que assistiam, desejando-lhes as boas vindas e dando o tema para o concerto: «Falar de Portugal do passado, do futuro» – que também existe – e Portugal do presente que tem várias vezes o «Acesso Bloqueado» – nesta canção, o compositor criticou o mau uso que se fez dos direitos e liberdades que se ganharam com a democracia.
A banda não esperou muito pelos aplausos e seguiu em direcção a mais uma música icónica de Sérgio, «Liberdade». O refrão foi entoado por um público que erguia os punhos em direcção ao sistema planetário que se encontra no tecto do Coliseu. Punhos esses que mostram o apoio à causa defendida por Sérgio: «Só há liberdade a sério quando houver/A paz, o pão, habitação/Saúde, educação». A música termina em apoteose, quase como que o clímax do concerto já tivesse sido atingido, mas a verdade é que o clímax seria atingido muito mais vezes ao longo da exibição, como sempre acontece quando o material é de tão boa qualidade.
Sérgio continuou o concerto defendendo os interesses da classe trabalhadora portuguesa, utilizando palavras e metáforas que deixam qualquer um estarrecido pela capacidade poética deste senhor da música portuguesa. Um riff de guitarra cheio de distorção e num ritmo acelerado não deixa perceber logo qual a música que se avizinha, mas basta Godinho pronunciar as quatro primeiras palavras e já todos reconhecem «Maré Alta», do primeiro disco editado já no longínquo ano de 1971. A música recebe um tratamento quase Punk, diferenciando bastante da gravação original. «Esta é canção com a letra mais curta que eu alguma vez escrevi, mas depois compensei» – afirmou Sérgio Godinho num tom bem-disposto, que provocou alguns risos entre o público que bebia embevecidamente todas as palavras do cantautor – «às vezes é preciso repetir muitas vezes a mesma coisa para ela entrar.» Godinho explicou depois que quando gravou a música «Liberdade», não estava a passar por Portugal, que ele nem era permitido vir cantar ao nosso país, mas que a música tinha sido escrita como uma esperança de que a Liberdade chegasse até nós. O músico lembrou ainda a Guerra Colonial, antes de partir para a belíssima «Fotos de Fogo» que protagonizou o primeiro momento mais «sereno» do concerto, acompanhado apenas pelo teclado de João Cardoso e pela exímia guitarra tocada por Nuno Rafael que se resumiu ao papel de criar ambiente durante esta música. O ambiente da canção remonta-nos para aquele sentido em «Capangala não Responde» de Jorge de Sena que soube também retratar magnificamente aquilo que foi a Guerra Colonial portuguesa e as suas consequências nos soldados.
Depois desta canção arrasadora, era a vez de um riff de Blues encher a sala e Sérgio começar a cantar «Lisboa que Amanhece», com uma nova roupagem. Fazendo uma retrospectiva, este é provavelmente o estilo que mais favorece a letra. Sobre uma Lisboa boémia e nocturna; uma visão à Lou Reed, não de Nova Iorque, mas sim de Lisboa. Basta substituir Holly por Necas e temos quase que um «Walk on the Wild Side» português, mas menos freak. Godinho continuou depois no seu ataque às instituições, atacando desta vez as praxes académicas, num tom irónico e que fez repensar quem alguma vez praxou se tal não terá sido a decisão errada.
A 29 de Março de 1974, na mesma salda onde decorria este concerto, Zeca Afonso cantou «Grândola Vila Morena». Godinho referiu esse concerto e informou que iria cantar uma canção composta por Zeca Afonso, mas que nunca chegara a ser gravada por causa da censura. «A música chama-se «Na Rua António Maria», a rua Maria António Fonseca [lapso do cantor que se queria referir à Rua António Maria Cardoso], que era a sede da PIDE.» No fim da música sai do músico um «Viva o Zeca!» que é apoiado em peso pela audiência que não esquece o génio que foi José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos. A luz do palco torna-se amarela e só ilumina as costas da banda que se lança numa versão eléctrica e obscura de «Os Vampiros». O público acompanha Godinho enquanto este canta – com uma raiva a sair por entre os seus dentes – um dos refrões mais repetidos na música portuguesa: «Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo e não deixam nada». O espírito do Zeca permanece em nós e não irá desaparecer assim tão rápido, nós não o permitiremos. Godinho despediu-se de Zeca e seguiu depois recitando e cantando «Fugitivo», por cima de texturas sónicas criadas pelos músicos que o acompanham, enquanto o cantor se interroga diversas vezes «Valeu a pena?».
De seguida Sérgio chamou a palco a rapper portuense Capicua para interpretar consigo o tema «Pode Alguém Ser Quem Não É?», numa versão que não podia ter menos em comum do que com a gravada para o disco Pré-Histórias. Capicua encaixou-se perfeitamente na música, tendo ainda a oportunidade de cantar «O Elixir da Eterna Juventude» com Sérgio, mostrando ser uma admiradora do músico (coisa que nunca escondeu), aproveitando quando não tinha que cantar para dançar em palco enquanto Sérgio cantava sobre o «elixir». Que Godinho é simpático e atencioso, já todos sabemos, mas o músico que já partilhou o palco com outro grande nome do Hip-Hop (Pac-Man) teve a delicadeza de deixar que Capicua cantasse um tema do seu último registo, «Vayorken». Antes da Sereia Louca poder começar a cantar, a banda vestiu t-shirts onde se podia ler «I Love Vayorkene». A música de Capicua levou a que se ouvisse um sample da «Canção de Embalar» de Zeca Afonso e a MC referiu como quando era mais pequena «Era sempre mais Mafalda do que Susaninha/Ai de quem dissesse mal do Sérgio Godinho», prestando a sua homenagem ao homem com quem partilhou o palco nesta noite mítica, em boa parte também devido à sua presença.
Depois Sérgio tocou «Espalhem a Notícia», sobre uma mulher bonita, usou este tema para apresentar «Etelvina», com um instrumental quase circense e onde Godinho aproveitou para transformar um verso para referir um assunto de actualidade e que valeu uma enorme ovação por parte do público: «Se um que anda fora de grades/Sócrates está na prisão». Uma pausa para explicar que a canção seguinte era um fado composto para uma revista de um grupo de teatro e que o tema principal da composição volta a ser a Liberdade e a criação de laços na vida. Passou depois pelo tema «Quatro Quadras Soltas», que podemos recordar pelo disco Quatro Cantos, com os seus companheiros de cantiga de intervenção: Fausto e José Mário Branco.
A banda saiu de palco, mas o suspense não foi grande pois o técnico de palco colocou duas guitarras acústicas e dois bancos no local onde se encontravam Nuno Rafael e Miguel Fevereiro. A introdução volta a parecer estranha, podendo até parecer um inédito até Sérgio Godinho começar a cantar. A pergunta de ordem é «Que Força É Essa?», uma das pedras basilares de Os Sobreviventes e que fez com que o público voltasse a entoar completamente uma canção, com especial ênfase no verso «Não me digas que nunca sentiste uma força a crescer-te nos dedos/E uma raiva a crescer-te nos dentes» e no refrão que está entranhado em nós. O músico voltou ainda ao tema «Foi aos 25 Dias de Abril», tocado logo no início do concerto. A canção terminou com Sérgio a gritar «Viva o 25 de Abril!». Godinho teria ainda tempo de se apropriar das palavras de Winston Churchill e afirmar que «A Democracia é o pior de todos os sistemas/ Com excepção de todos os outros», antes de apresentar a banda e se despedir por uma segunda vez do público apenas para voltar com um pequeno presente.
Nesta noite, Sérgio cantou uma música só para mim. O acorde soa, a minha infância e as viagens de carro com os meus pais vêm-me à memória e a minha boca solta todas as palavras da letra de «O Primeiro Dia». Foi este o culminar da noite, quando um Coliseu inteiro cantou as palavras que guardo no meu coração desde criança: «Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida».
Antes de ir embora, Sérgio Godinho deixou-nos ainda mais três momentos. O primeiro foi a canção «A Noite Passada». Depois recitou o poema «Esta era a madrugada que eu esperava» de Sophia de Mello Breyner Andresen, um dos poemas mais tocantes da maior poetiza portuguesa. E, por fim, para terminar, Sérgio chamou Capicua ao palco para cantar com ele e connosco um reprise de «Liberdade».
Há momentos definitivos para a formação do carácter de uma pessoa, enquanto ser humano. Esta foi a noite em que o Sérgio Godinho foi responsável por definir uma nova parte de quem sou.
Alinhamento
Foi aos 25 de Abril
Já Joguei ao Boxe, Já Toquei Bateria
Acesso Bloqueado
Liberdade
Foi a Trabalhar
Maré Alta
Fotos do Fogo
Lisboa Que Amanhece
Maça Com Bicho (Acho eu da Praxe)
Na Rua António Maria
Os Vampiros
Fugitivo
Pode Alguém Ser Quem Não É?
Elixir da Eterna Juventude
Vayorken
Espalhem a Notícia
Etelvina
Quatro Quadras Soltas
Encore:
Que Força é Essa?
Democracia
Encore 2:
O Primeiro Dia
A Noite Passada
Liberdade
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(Fotos: Duarte Pinto Coelho)