
E se pegássemos em dois filmes mudos do tempo da Maria Caxuxa e os vestíssemos com roupas musicais do século XXI? Foi esse o desafio proposto pelo Teatro Maria Matos (repetindo uma experiência acontecida em Julho nas Curtas Vila do Conde) e o resultado foi… a mais pura magia.
O espectáculo começou com os peixe:avião a musicarem “Ménilmontant”, um filme mudo francês de 1920. Se o seu enredo é um banal melodrama (duas irmãs órfãs perdendo-se nos labirintos obscuros de uma grande cidade), a mestria e experimentalismo com que Dimitri Kirsanoff o filma elevam-no ao estatuto de obra-prima. Contrariando as convenções do cinema mudo, o filme não contém uma única legenda explicativa. As palavras seriam redundantes quando a poesia das imagens e o colorido emocional dado pela electrónica hipnótica dos Peixe-Avião já dizem tudo. A inocência perdida pelas protagonistas foi também a nossa.
O segundo filme-concerto foi “In the Land of the Head Hunters”, musicado pelos guitarristas Filho da Mãe e Jibóia. Este documentário ficcionado, realizado há cem anos pelo fotógrafo e etnógrafo Edward Curtis, retrata a vida de uma comunidade de índios americanos da costa Oeste do Canadá, na sua suposta pureza original. Curtis filmou então com a sofreguidão de quem se sabia testemunha de um tesouro prestes a desaparecer. A realidade era contudo mais cínica: já naquele tempo os crimes coloniais tinham aculturado as tribos indígenas, com Curtis a manipular as suas imagens, excluindo todos os seus elementos ocidentais. Filho da Mãe e Jibóia não repetiram o pecado original de Curtis: assumiram sempre a sua contemporaneidade, reinventando o transe xamã ancestral com a distorção eléctrica mais vanguardista.
O que foi não volta a ser, não o negamos. Nunca saberemos ao que estes filmes sabiam quando foram estreados há cem anos atrás. Mas através da subversão inteligente das escalas de tempo – realizada por músicos de excepção – degustámos estes filmes com prazer, sentindo o travo a novo a picar-nos a língua.
Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo