
Ribeira do rio Tejo, Barreiro, 21h25 do dia 8 de Outubro de 2015. O rio adormece, as janelas fechadas, as luzes apagadas. As da rua, acesas, quentes, o outono a piscar-nos o olho. Numa rua, um grupo de pessoas reunia-se em frente a uma porta aberta. Entramos, fala-se baixinho. Lá dentro, ouve-se o saxofone de Akira Sakata falar com o piano de Giovanni Di Domenico. Sentamo-nos, atentos. Os pêlos eriçam-se, efeito da dicotomia entre a serenidade dos sopros de Sakata, ora mais quentes ora mais frios, e os nervos pulsantes de Domenico. Ao piano, os dedos apareciam-nos fantasmagóricos, quase uma ilusão feita de contornos e manchas pouco definidas. Por entre as notas soltas do piano, Sakata vai trocando os ténues e divinos reflexos azuis sobre o dourado do saxofone pela bacidez do clarinete. O free jazz conquista-nos e, sobre ele, ouvimos palavras murmuradas e gritadas em japonês – cremos. Os olhos do saxofonista sempre fechados convidam-nos a imitá-los. Imitamos. Sem querermos nem darmos por isso, termina o concerto. Palmas.
Altura de dar atenção aos cigarros. As portas para o pátio exterior abrem-se e lá ficamos até sentirmos o chamamento. Saímos do edifício, entramos por outra porta, subimos as escadas e sentamo-nos. Já a sentimos no ar. Ao chegar até nós, Matana Roberts cumprimenta-nos tímida e graciosamente. Não perdeu tempo em espalhar os seus amuletos sonoros de Voodoo e logo convocou à sala todos os espíritos rítmicos e sonantes que ouviam o seu apelo. Na sua voz possuída escutávamos os espíritos que através dela falavam. No saxofone, a sua verdadeira expressão, a sua voz que dialogava com as almas que esvoaçavam, estendidas, no caldeirão dos nossos ouvidos. “This is an experiment, an improvisation”, repetiu. Na palma da sua mão descansava um livro de onde retirava a receita que entoava.
Um concerto de Matana Roberts não é apenas um concerto. É uma colagem sonora de tempos, espaços, pessoas e histórias. Mais concretamente, da história afro-americana. Num só conjunto de sons e notas, a invocação de toda a história de um país, não necessariamente uma boa história. Projetadas na parede passavam fotografias e filmagens de uns Estados Unidos da América aparentemente longínquos, mas com uma ferida ainda hoje visível e aberta. As plantações de algodão, as grilhetas, o comércio de escravos, famílias inteiras de desumanizados e famílias inteiras de desumanizadores, Luther King, Malcolm X. Lia-nos uma sátira do Juramento de Lealdade à bandeira dos EUA, cantava-nos trechos de “Amazing Grace”, polvilhava notas no saxofone, trauteava canções de criança ingénua. Matana Roberts carrega em si todo o peso e dor da história dos negros nos EUA e transmite-nos essa história apenas recorrendo às sensações que cria e nos faz sentir. Os drones electrónicos entrelaçavam-se com sons gravados em campo pela própria Matana nos estados do Louisiana, Mississípi e Tennessee, mas não precisávamos que ela nos contasse isso. Sentíamos na pele e na mente todo o imaginário que invocava, todo o sofrimento, protesto e esperança ecoava nos nossos tímpanos. “I believe in hope” – despedia-se.
Descemos para o andar de baixo, para o último concerto. Miguel Mira, Pedro Sousa e Afonso Simões já se preparavam para o definitivo show de free jazz da primeira noite do Out.fest. “Though this be madness yet there is method in it”. E que método. A frase de Shakespeare podia perfeitamente estar a falar do trio que fechou a noite. Num perfeito caos jazzístico, as mãos dos três rapazes eram um só ser, impossível ao homem comum de decifrar. Saxofone, violoncelo e bateria confrontavam-se confraternizando, numa desordem ordenada que fazia estremecer os nervos de qualquer um. A corrente do prato pululava de tensão, reagindo às ténues linhas musicais que se entrelaçavam numa aleatoriedade pensada. O stacatto do violoncelo conduzia, a par de uma bateria carismática e pulsante, uma colisão de átomos, uma explosão de matéria sonora. O pêndulo frenético de polifonias era a máxima expressão de vida, a vida a querer sair pelos dedos. Um fervilhar, fervilhar, fervilhar de sons. Tensão, tensão, tensão. Prova de fogo, prova superada. Logo há mais.
Fotos: Francisco Fidalgo