Na passada quinta-feira, na Culturgest, os Mão Morta e Pedro Sousa deram-nos uma pancadaria de música extrema vanguardista. Sobrevivemos. O que não mata, fortalece.
Henrique Amaro e André Tentúgal têm um curioso passatempo: enfiar dois artistas portugueses numa moulinex para ver o que de lá sai. Desta feita, foram os Mão Morta e o saxofonista Pedro Sousa a serem triturados. Já conhecíamos o cozinhado do EP Tricot – dissonante e atonal, só para ouvidos robustos – mas faltava mastigá-lo ao vivo. Na quinta-feira passada, o auditório da Culturgest esgotou a sua lotação para assistir à sua estreia em palco.
A primeira coisa que reparamos é num insólito urso de peluche sentado numa cadeira, a antítese absoluta do caos sonoro que se seguirá. Adolfo não dirige uma única palavra ao público, começando, sem mais delongas, a declamar a informe “Com as Próprias Tripas”, a sua voz distorcida electronicamente (como um andróide possuído pelo demo) e o saxofone entre o sonhador e o psicótico. Sem qualquer interrupção, avançam logo para “Dias de Abandono”, exótico e arabesco no início até uma angústia sinistra se instalar. “A Dança das Raparigas” é mais ritmada, com uma batida circular motorik em pano de fundo, para o feedback de guitarra não se perder pelo caminho.
Com os três temas de Tricot já despachados, segue-se uma carrada de inéditos. A estética é sempre extrema e vanguardista, entre a improvisação free jazz e os drones obsessivos de guitarra à Swans, tudo salpicado com electrónicas retro orgulhosamente escangalhadas. Não sendo um repasto nada fácil, ficamos todos vaidosos da nossa rijeza estética (às vezes, claudicamos, e uma insidiosa dor de cabeça começa a instalar-se, mas logo nos reerguemos, quais Rambos do avant-garde).
No encore, temos uma saborosa surpresa: uma feliz revisitação de “Aum” (do álbum de estreia dos Mão Morta), engrandecida pelo saxofone demente e incansável de Pedro Sousa. Mal Adolfo chega à maternidade, vindo do cemitério, grita o icónico mantra: “o tempo não espera por mim”, variando depois no destinatário: “por ti”, “por nós” (a sua dança trôpega, de marioneta bêbada, atingindo o seu zénite). É uma verdade. Mas a noite foi bonita. Não demos o tempo por mal gasto.
Fotografias gentilmente cedidas por Vera Marmelo.