
Platão dizia que um artista não é senão um imitador. E se vivesse na noite de 9 de Outubro do ano presente, se estivesse no Museu Industrial da Baía do Tejo às 21h30 dessa mesma noite, disso não teria dúvidas. No museu, adormecido pela noite, AMM (hoje um duo protagonizado pelo fundador Eddie Prévost e o pianista John Tilbury) criavam um conjunto de sons que davam vida às máquinas e estruturas de metal que nos rodeavam. Também elas eram a música, através não só da sua imitação como do silêncio desconcertante e abalador que se fazia sentir por entre as notas e sons dispersos. Soava-nos a uma Ode Triunfal sem o movimento sufocante das engrenagens das coisas mecânicas e industriais. Exactamente o seu oposto, diríamos até. A fuligem, as faíscas apagadas no ar, a dança das máquinas descansando, sem o carvão a dar-lhes vida. As alavancas e roldanas sem pressas rodopiavam pelo ar, chiando e guinchando, ruidosas e perras, sem óleo, entorpecidas. Na parede, a sombra incorpórea de Prévost majestosamente se movia, lenta e carinhosamente limpando e oleando as suas adoradas máquinas (címbalos, gongo e um enorme tambor), dando-lhes corda e baqueta. No piano, Tilbury romanceava a decadência das máquinas ou o amor por elas, com notas escuras e frias, espalhadas e estilhaçadas. Um objecto que rodopiava suavemente em cima da pele do tambor lembrava uma ventoinha fabril a ser desligada ao final do dia – ou da vida. O arco de violino nos pratos, como uma serra chorando, invadia o espaço do silêncio num cenário minimalista e apocalíptico. E os ecos terminavam, as máquinas paravam.
David Maranha, Helena Espvall, Ricardo Jacinto e Norberto Lobo criaram um universo acústico completamente distinto. As cordas dos violoncelos, do violino e da guitarra gritavam um nascer da aurora como um primeiro afinar da manhã, um abrir de olhos espreguiçado. O arame e as crinas tocavam-se como amantes inseparáveis e eternos, os pássaros no violoncelo cantando a aurora, sorrindo ao sol, voando como lhes manda a liberdade fervilhante neles. Mas depressa a aurora se tornou noite e os quatro uniram esforços para tingir de negro o manto sonoro que teciam. Distorções e delays imersivos e espectrais, reflexos sonoros de azulejo, cimento e mar enchiam-nos as medidas num espectáculo de sons orgásticos e dissonantes mas que não tinham outra forma possível de ser. Perto do final, o lençol de sons dançava uma valsa que era pra nós um mantra que aceitávamos e repetíamos. Até findar.
Vladislav Delay fez jus ao seu apelido de palco e preencheu todo o museu com batidas descompassadas e paisagens sonoras infinitas. Domava os seus animais polifónicos – que começavam num computador e só acabavam nas paredes e na pele da audiência – com as mãos, dobrava-os e fazia deles o que queria. O Museu Industrial do Barreiro tornava-se uma discoteca de uma realidade ou planeta diferente, uma piscina de sons e ondas perenes que levámos pra casa, para sempre em repetição nos cantos mais reverberantes da nossa mente.
Fotos: Francisco Fidalgo