Como é que um fulano meio tímido em palco, com um nome artístico esquisito, sem nenhuma editora por detrás a promovê-lo, ou sequer uma banda a acompanhá-lo, teve os bilhetes para o seu concerto no São Luiz (ainda que gratuitos) esgotados em menos de uma hora? A Internet democratizou de tal forma os circuitos de promoção da música “Pop” que, mesmo nas condições mais adversas, quando aparece alguém realmente talentoso e original como é o caso do Noiserv, é quase inevitável que mais tarde ou mais cedo chegue o devido reconhecimento público. Foi isso que aconteceu com David Santos, cujos dois álbuns já lançados sem editora criaram um culto crescente à sua volta. Quando se tem mais de vinte e seis mil “likes” na página do “Facebook”, imaginem o poder de propagação que o mais discreto “post” pode ter. Ora, quando a somar a isto, Noiserv está há 3 anos sem editar nada em nome próprio (sendo que em nome colectivo está perdoado porque assinou entretanto o soberbo primeiro álbum dos You Can’t Win, Charlie Brown), é natural que as tais vinte e seis mil almas ávidas e famintas tenham todas corrido ao mesmo tempo para a bilheteira – atropelando umas quantas velhas mais desprevenidas pelo caminho, para conhecerem, em primeira mão, as novas canções de Noiserv. E só lá não estiveram todos porque não cabiam. Os que no Dia Internacional da Música conseguiram sentar-se nas cadeiras do São Luiz sentiram-se parte da mais elevada das castas: só eles tiveram o privilégio de conhecer uma grande parte das canções do novo álbum Almost Visible Orchestra, seis dias antes dos comuns dos mortais o poderem fazer (sai a 7 de Outubro, numa “FNAC” perto de si!).
Se muitas das canções foram novas, o formato continuou o do costume. Graças aos seus talentos de multi-instrumentista, e a um pedal mágico (“loop station”) que faz com que cada “riff” anterior continue a ecoar (numa acumulação sucessiva de camadas como quem descasca uma cebola ao contrário), o milagre da multiplicação aconteceu de novo, surgindo de um só homem uma imensa “orquestra quase visível”. David Santos não tem grandes preconceitos em relação ao que lhe poderá servir para fabricar o seu som: tanto lhe servem guitarras, teclados vários, metalofones e melódicas, como caixas de música, máquinas fotográficas, megafones e pistolas de brincar! Um fio condutor une, contudo, aquela caótica panóplia de instrumentos e quase-instrumentos: o fascínio pelo som analógico “old school”, bem como as texturas suaves e melífluas, como anjos a dançarem de pés descalços, que nos fazem perceber o quanto são irónicas as cinco primeiras letras de “Noiserv”.
Como também é costume nestas andanças, a ilustradora Diana Mascarenhas (prima de David Santos) partilhou o palco com Noiserv, montando um ardiloso aparato multimédia. Com a sua caneta digital precisa e paciente, Diana ia desenhando livremente ao sabor de cada canção, sendo cada traço seu projectado sobre uma tela gigante: a cura que David Santos encontrou contra a terrível solidão dos grandes palcos.
Sendo compreensível o facto de o novo álbum ter dominado o alinhamento do concerto, seria contudo criminoso se Noiserv tivesse posto de parte todas as canções emblemáticas do passado. Noiserv não o fez, recordando aos seus devotos porque é que a “Bullets on Parade” do primeiro álbum, a “Mr. Carousel” do segundo, e a “Palco do Tempo” do documentário “José & Pilar” são a única Santa Trindade em que realmente acreditam. Foi também numa das antigas (“The Sad Story of the Old Town”, do segundo disco) que aconteceu um curioso acontecimento.Noiserv tocou uma primeira linha de guitarra, e quando passou aos teclados, parou de tocar e disse-nos: “Isto está um bocado fora do tom, não está? Enganei-me no tom da viola. Pena ter perdido já o meu único crédito tão cedo.” E recomeçou a tocar agora no tom certo. Noiserv é a anti-vedeta por excelência, e é precisamente a sua espontaneidade despretensiosa que torna o espectáculo tão intimista.
Mas o momento alto do concerto aconteceu mesmo numa canção nova (“I Was Trying to Sleep When Everyone Woke Up”), na qual o dogma sagrado da solidão musical de Noiserv foi hereticamente violado. E foi mesmo um estupro à grande porque foram logo seis os amigos que açambarcaram o palco a David paracantarem com ele: Rita Redshoes, Francisca Cortesão (Minta), Luísa Sobral, Luís Nunes (Walter Benjamin), Afonso Cabral (You Can’t Win, Charlie Brown) e Esperi (um amigo escocês de David Santos). Um pensamento provocou-me calafrios: se o telhado ruísse naquele momento em cima do palco, cerca de 70% dos novos nomes interessantes da nossa “Pop” iria, de uma só vez, à viola. Foi com alívio que, por fim, os vi descer do palco. Ilesos.
No final do concerto, ninguém deixou Noiserv abandonar o palco sem cumprir os devidos “encores”. Afinal, foi o próprio Noiserv que nos ensinou isso numa das suas canções novas. “Don’t say hi if you don’t have time for a nice goodbye.”
(Fotos por Rogério Ribeiro)