
Ouvir música em disco é muito bom, é certo, mas há uma magia na música ao vivo que é difícil de igualar. Em vez da expectativa de algo que não conhecemos, impõe-se a expectativa de algo que já conhecemos e ouvimos. Ficam, então, duas soluções para as bandas e músicos: dar ao público aquilo que ele espera, replicando ao máximo aquilo que conhece, ou desafiá-lo, provocá-lo, defraudar-lhe as expectativas (se por defraudar entendermos contrariar). Levá-lo a territórios que desconhece. De certo modo, não ser burocrata fora da indústria: isto é, não fazer dos concertos uma performance descartável, fácil, cujo único intuito é ser trauteada em piloto automático – mesmo que na interpretações de bons temas.
Kurt Vile optou pela solução menos convencional. Com ou sem a ajuda da garrafa de vinho que trazia em punho (e que foi esvaziando em palco), o concerto foi muito seu (digamos assim): estava como que num transe interior, onde a música era tudo o que importava. Chegar à melhor sequência de riffs, entoar os versos da maneira mais irrepetível (e mágica) possível, levar o desconforto aos que esperavam uma música domesticada: isto é, ilusória.
Por isso mesmo, no concerto que deu no Armazém F, em Lisboa, moldou as canções. Exemplos mais óbvios? A delicada “Jesus fever”, que passou a tema inquieto, mais cheio; “Wild Imagination”, um dos mais bonitos temas de B’lieve I’m going down (2015), arrastados para além do arrastamento que se pressente já em disco, e “Freak train”, música de encerramento pré-encore (talvez o único momento em que cedeu um pouco à teatralidade e à necessidade de uma performance mais estereotipada), em que um dos Violators (banda que o acompanha em palco) soprou no saxofone como se não houvesse amanhã (e o volume estava bem alto). Onde Vile mais resistiu à reinvenção foi, talvez, em “That’s life tho (almost hate to say)” – onde o peso das palavras mais exige a solenidade. É difícil retirar-lhe densidade, dar-lhe luminosidade, transformá-la numa coisa diferente.
As hostilidades foram logo abertas com “Dust Bunnies”: You may think that it’s funny now / That I got a headache like a shop vac coughin’ dust bunnies. E daí em diante foi tudo bom. Um dos melhores momentos veio com a irónica “I’m an outlaw”, onde o fora da lei Kurt Vile canta, de banjo na mão: “I’m an outlaw / on the brink of / self-implosion / alone in a crowd / on the corner / going nowhere slow“. E ainda houve tempo momentos mais ternos (mas sempre envolvidos em tensão interior) como “Stand Inside” ou “Dead Alive”, por exemplo.
Ponto negativo? Difícil encontrar na ação dos músicos, para quem os recebeu de braços abertos: com expectativas pouco delimitadas, pelo prazer de ouvir música autêntica e irrepetível (ao invés da vontade de ter um concerto imaculado). Porventura, as luzes do espaço são algo de negativo a referir: estar a levar com luzes fortes a piscar e a incidir brutalmente no público (ao ponto das pessoas ficarem encadeadas) não ajuda à fruição do momento (mas também, verdade se diga, não é o essencial). O essencial é sermos contemporâneos de Kurt Vile. O resto daí se infere.
Fotos: Francisco Pereira