
Quatro anos depois da conversão do festival Super Bock em Stock, o Vodafone Mexefest é já uma certeza. A certeza de que entramos num festival diferente de todos os outros, onde o cartaz parece não ser tão apelativo quanto isso, mas de onde se sai completo, com as melhores sensações que só o centro da capital portuguesa pode oferecer. O primeiro dia da quarta edição do festival não foi diferente.
A noite começou às oito em ponto – antes já Akua Naru cantava no Vodafone Blackout Room, mas com lotação esgotadíssima -, com El Salvador (Seabra), baterista dos Capitão Fausto acompanhado de alguns companheiros de estrada. Aos olhos de uns, a música de Salvador pode ser vista como desprovida de qualidade, de arte, feita de infantilidades. Mas é precisamente a ingenuidade, o canto juvenil de quem só quer desabafar e queixar-se daquilo que lhe faz a mais pequenina das comichões, sem pretensiosismos nem grandes manhas, que faz de El Salvador uma fonte de vida refrescante e risonha. Sem grandes tecnicidades, interessa o sentimento e a pureza do mesmo. Com ele, as preocupações desvanecem e a vida parece simples.
El Salvador estava quase a terminar quando Anna B Savage e Tó Trips já tocavam pela Rua das Portas de Santo Antão, cada um em seu sítio. A primeira, com casa – ou igreja – cheia, fazia crescer o número de curiosos que à porta iam ouvindo uns laivos vocais embelezados pela acústica pastoral. Pela fila interminável seguimos, até finalmente entrar. No altar, Savage não nos revelava demasiado os contornos daquilo a que praticava o culto. Tímida, a guitarrista ora se acalmava ora explodia em mil vocábulos e acordes rasgados. Um tremor angelical que só ela própria podia descrever: “It was beautiful and terrible”, cantava-nos, o nosso olhar posto na arte sacra da Igreja de São Luís dos Franceses e os ouvidos hipnotizados pela música não menos sagrada. Lá fora, chegava-nos o cheiro a grelhados, o som de Lisboa, a saudade que com Anna Savage partilhávamos.
Lisboa ouvia-se também em Tó Trips, ainda que canção fosse outra. Na Sociedade de Geografia de Lisboa, o guitarrista lisboeta dava-nos tudo aquilo que dele queríamos. Aplaudido entusiasticamente, o guitarrista – que levou consigo um exímio percussionista – era recebido por uma sociedade dedicada e bem composta. Sentar e sentir tornava-se o mesmo verbo, com vogais diferentes. Os curvos padrões dos ferros que delimitavam os balcões eram as notas esculpidas no mundo físico e palpável pelo expressivo guitarrar de um dos mais inconfundíveis e únicos guitarristas portugueses. A cada nota mais se encurvavam os ferros, a cada nota ouvíamos um lugar diferente. No público falava-se de Portugal, Ásia e África na guitarra, globalização na bateria. As palmas não cessavam e saíamos felizes da aula de Geografia.
Akua Naru já enchia a Estação Vodafone.FM com a sua contagiante mistura de hip-hop e neo soul. Depois de esgotar a sala às escuras ao início da noite, também agora era quase impossível entrar no espaço. Com uma das melhores vozes da noite – só Benjamin Clementine a destronaria -, a artista americana fez-se acompanhar de uma banda completa, que tocava para uma Lisboa que se revelava nas suas costas. O castelo ao fundo, o miradouro da Graça, todos acolhiam as sonoridades afro-americanas, Tejo feito Mississippi. Hora de espreitar o Cinema São Jorge.
Já todos sabíamos o que esperar de um concerto dos Villagers, apesar de ser a primeira vez deles em solo nacional. Aos primeiros acordes, parece que entramos num mundo à parte, que estamos parados no tempo, com a banda à espera de nos receber com as mãos cheias de sentimentos sofridos, dolorosos, mas que soam celestialmente. Com os Villagers não há pressas nem vestígios de ritmos em desassossego. Mas ele existe, sobretudo através das letras que Conor O’Brien canta, intrincadas, repletas de inquietação e angustia. Muitos dos temas do recente Darling Arithmetic pareceram ainda mais adultas do que já são em disco, e essa foi a prova de que a banda está bem oleada, e por isso capaz de nos oferecer um bom concerto, numa hora onde a paz e tranquilidade sonoras ganharam corpo e encheram a sala do São Jorge.
Enquanto Machmundi estreava o Tanque, o público começava já a encaminhar-se para o concerto de Chairlift, no Coliseu dos Recreios. Fizemos da galeria o nosso palanque e de lá assistimos ao maior flop do primeiro dia. Sonoridade vazia, inexpressiva, monótona, num concerto que pareceu nunca ter saído da primeira canção. Entrando em palco quase vinte minutos depois da hora marcada, os Chairlift tiveram também de encurtar o seu espectáculo, transformando-o num frete feito de tédio e música sensaborona. Saímos dali com sede, e no São Jorge saciámo-la em pleno.
À hora marcada, dez minutos depois de os Ducktails começarem a fechar o Teatro Tivoli, Márcia avançou em linha recta e mostrou-nos a força crescente de “Cabra-Cega”, logo ao abrir do pano. Parecia ter pressa de jogar os seus trunfos mais conhecidos, o que faz sentido neste formato de concertos curtos do Mexefest. E assim foi, saltando de canção em canção, falando com o público, pedindo e incentivando a vontade e a coragem (que acabou por faltar) de alguém que quisesse substituir, no palco, a ausência de J.P. Simões para com ela cantar “A Pele Que Há Em Mim (Quando o Dia Entardeceu)”. Acabou por cantar sozinha, e ainda bem, uma vez que esse foi um dos momentos mais bonitos (como sempre, aliás) do concerto. Mas houve quem subisse ao palco um pouco antes, para fazer a perninha habitual. Foi Samuel Úria, que cantou “Menina”, com a muito menina Márcia. Por falar em ausências, também faltou Criolo, e por isso “Linha de Ferro” ficou um bocadinho mais pobre. Houve ainda tempo para muitas outras canções, sobretudo do mais recente Quarto Crescente, como “A Insatisfação” ou “Urgência”, por exemplo. Mas o tempo passa com a rapidez que não gostaria que tivesse, e era já tempo de arrancar, de descer apressadamente até às Portas de Santo Antão para assistir à grande estrela deste primeiro dia do Mexefest.
O Coliseu estava repleto de gente para assistir ao concerto da noite. Todos queriam ver e ouvir Benjamin Clementine. A música parece ter ganho, com ele, uma nova estrela. Acho bem que assim seja. Estatuto mais merecido não há. Quando apareceu em palco, tímido como de costume, agradeceu os primeiros aplausos e sentou-se ao piano. O que aconteceu a seguir foi quase indizível. Clementine é um furacão que assola os ouvidos e as almas por onde passa. A sua voz faz lembrar uma galáxia de sons e sentimentos. Arrasa o que estiver à sua frente, e os milhares que o ouviram na noite de ontem perceberam o poder daquele homem enorme. As suas canções são histórias de vida, valorizam a palavra cantada, e são, muitas delas, clássicos instantâneos. “Cornerstone” é, como sabemos, o melhor dos exemplos. Como resistir a “I am alone in a box of stone / When all is said and done / As the wind blows to the east from the west / Unto this bed, my tears have their solemn rest”? É claramente impossível… Apenas com um álbum editado e dois EPs na bagagem, o músico que nasceu em Inglaterra, mas que cresceu para a arte (sim, é mesmo disso que se trata) em França, foi desfilando, uma a uma, várias das suas poderosas canções, por vezes a solo, outras vezes na companhia do talentoso Alexis Brossard na bateria. O que parece ser uma improvável junção (piano e bateria), resultou perfeitamente. Durante mais de uma hora, Benjamin Clementine mostrou-nos o seu génio. Mostrou o que nele existe de Nick Drake, de Tom Waits, de Nick Cave, de Nina Simone, de Brel e de Aznavour, num concerto inesquecível, que teve direito a encore e a aplausos tão longos e sonoros que pareciam não ter fim, com o público a bater os pés no chão, fazendo abanar o Coliseu. Benjamin Clementine é um monstro! Um monstro bom, criador de uma expressão musical híbrida, única no panorama actual. Apesar de ter o mundo rendido aos seus pés, há nele uma enorme e indisfarçável solidão. Este monstro precisa de amigos, e ontem passou a ter mais alguns milhares.
Texto: Carlos Lopes e Francisco Marujo
Fotos: Francisco Fidalgo
Vídeo: Pedro Ponte