Quando um dia se fizer a História da minha geração (a nascida em Portugal na década de 70), dir-se-á que ela nos deu dois grandes escritores de canções. O primeiro nasceu no Porto, passeou por diversas latitudes da Pop anglo-saxónica e chama-se Manel Cruz (Ornatos Violeta, Pluto, Supernada, Foge Foge Bandido). O segundo nasceu em Coimbra, aventura-se pelos territórios do Jazz, da Bossanova e da Canção Francesa, e chama-se JP Simões (Pop Dell’Arte, Belle Chase Hotel, Quinteto Tati e ele próprio a solo).
Quis a divina providência que nesta sexta-feira, no apinhado e quente jardim do Museu do Chiado, eu tenha feito um pouquinho parte dessa História, assistindo a um concerto do JP (lê-se “Jê Pê” e não “Jota Pê”, e, parafraseando os Smiths, perguntem-me porquê e eu cuspirei nos vossos olhos). Sem a banda que gravou com ele o disco, e sem sequer um palco que o protegesse da ávida multidão que o cercava, JP Simões só tinha para sua defesa uma guitarra semi-acústica, uma cadeira, duas minis fresquinhas, um maço de tabaco e a sua sofisticada mordacidade – e foi, acreditem, quanto bastou para um espectáculo e pêras.
As canções saíram quase todas do novo disco Roma, aqui despidas de qualquer orquestração que não a do dolente dedilhar dos seus dedos. Ao contrário do disco anterior feito em parceria com o compositor e guitarrista de Jazz Afonso Pais (Onde mora o mundo), o tema central destas canções já não é a sombria impossibilidade do amor mas sim o sombrio estado do mundo. Neste virar de dentro para fora, JP teve a preocupação de subverter o lugar-comum da canção de intervenção, com uma alegria, uma loucura e um humor muito saudáveis, quer na música, quer nas suas irreverentes letras (cantadas em português, inglês, italiano e francês).
Este despentear de convenções extravasou as próprias canções, ocupando os seus interstícios com monólogos delirantes, tiradas contestatárias e encenações hilariantes, numa espécie de “stand up comedy” sentada, muito ao jeito do Tom Waits.
Ainda houve direito a um instrumental melancólico sobre o fim do Verão, uma canção feita a partir de um poema de Boris Vian e duas covers de duas grandes canções: “La Javanaise” do Serge Gainsbourg e “Eleanor Rigby” dos Beatles (esta última subvertida com uma harmonização completamente diferente).
Mas a arma secreta foi deixada para depois do “encore”, a apocalíptica “A Marcha dos Implacáveis” (do álbum anterior), onde JP, imitando a voz do nosso Excelentíssimo Presidente da República, relata o seu terrível pesadelo onde “84,9 por cento de três milhões e meio de desempregados avançam loucos para São Bento e gritam mata, esfola, mata, esfola, mata”.
Amén.
(Fotos: Mário Romano)