Quem diria?
Quem diria, há uns anos atrás, que José Cid teria uma Aula Magna, lotada, a aplaudi-lo de pé, e não para festejar um “Favas com chouriço” ou um “Cai neve em Nova Iorque”, mas para celebrar a grande obra do rock progressivo português?
E foi isso que aconteceu esta sexta-feira, em Lisboa. A sala cheia, e com um público curioso: pais com crianças (algumas realmente novas); a equipa portuguesa que tem vencido as olimpíadas de Matemática (verdadinha); t-shirts de rock clássico (vi uma dos Yes e uma de Iron Maiden, coisa já não vista há pelo menos uns 15 anos); e muitos músicos, desde malta do rock à malta do jazz. É sempre bom sinal quando vemos muitos músicos entre o público de um concerto: é porque o material é bom.
E, neste caso, o material é muito bom.
O prato forte da noite era, naturalmente, 10.000 anos depois entre Vénus e Marte, o mítico disco de rock progressivo (ele gosta de dizer sinfónico, e tudo bem) editado em 1978 que ficou a pairar sobre nós como um ovni durante mais de 35 anos. A história do disco é conhecida, as cópias em vinil que se trocam no EBay por centenas de euros, o segredo contado entre músicos e conhecedores, o reconhecimento lá fora como um dos principais discos de sempre deste estilo musical. Esta é a história. E a história é importante, porque quem esteve na Aula Magna foi viver uma noite histórica; e curtir um rock à séria. E foi isso que aconteceu.
O espectáculo abriu não com esse disco mas com trabalhos anteriores: o EP Vida (Sons do quotidiano), de 1977, e mais atrás ainda, o Onde, Quando, Como, Porquê, Cantamos Pessoas Vivas, editado em 1975 pelo Quarteto 1111, com Mike Sergeant – o senhor das guitarras de 10.000 anos… na formação. Foram aí lançadas as sementes desta estirpe de rock, e esta introdução (uma espécie de passo a passo até ao destino) foi muito bem recebida. Seguiu-se uma sequência de quatro temas novos, que farão parte do novo registo de Cid, a editar em 2015. De seu nome Vozes do Além, mostra um José Cid de regresso aos campos do sinfónico e, dos temas mostrados, a aposta parece ter pernas para andar (extraordinário trabalho do guitarrista Francisco Martins em alguns deles), deixando algumas dúvidas nos temas mais lentos, com Cid em registo balada que, necessariamente, nos remete para o Cid que inevitavelmente nos está marcado na memória: o festivaleiro e o da música ligeira.
A verdade é que, ao terceiro tema, a Aula Magna estava de pé, a homenagear aquele a quem já chamaram de “Mãe do Rock Português”. Obviamente, com um público já conquistado, foi a euforia às primeiras notas de “O último dia na terra”, que abre 10.000 anos. Cid e a sua banda – um misto interessante de mestres e jovens de qualidade – tocaram o disco respeitando a ordem das faixas, o que faz sentido até porque o disco é uma viagem, uma narrativa, uma história com princípio, meio e um fim em aberto, de esperança. Em termos de performance musical, uma ou outra falha, imediatamente perdoada pelo público. José Cid havia já alertado para a complexidade dos temas e para a sua dificuldade de execução ao vivo: o que se viu, aqui e ali, foi alguma dificuldade de harmonização entre a voz de Cid e as excelentes vozes de apoio e entre o próprio sintetizador de Cid e as restante instrumentação (o sacana do Roland pareceu mesmo ter “encravado” num dos temas). Ainda assim, nada de grave. Pela positiva, gostaria de destacar três pontos: a voz de Cid, que continua forte, elástica e afinada; o baterista Samuel Henriques, fortíssimo a partir os tempos e a puxar a máquina; e, acima de todos, Chico Martins, com ar de quem não parte um prato, a dar um show de todo o tamanho na sua guitarra eléctrica.
O momento mais arrepiante da noite foi, sem dúvida, a faixa que dá nome ao álbum, com o público a aproveitar o facto de a letra estar a ser projectada para entoar, de voz firme, afinada e emocionada, a peça central desse tema. Acredito que, nesse momento, por trás dos eternos óculos escuros, José Cid se tenha sentido, de alguma forma, vingado. Ele que continua em busca da validação crítica e artística para juntar ao apelo popular que tem há décadas em Portugal. E que, ali, aplaudido de pé por mais de 1500 pessoas graças à sua obra maior, terá sentido que, finalmente, essa consagração estará a chegar.
No final, o exigente e injustiçado Cid fez questão de mandar mais uma das suas bicadas (e desta vez não foi ao Rui Veloso): lembrou o público que vai levar este mesmo show a Vilar de Mouros, “porque não tem nível para o Rock in Rio nem para o palco secundário”, indiciando ter sido rejeitado pelo colossal festival que trará os Stones a Portugal. Mais uma vez, Cid a reclamar o seu lugar. Num país como este, não fazer vénia a certos artistas e a certas entidades paga-se, e Cid pagou-o. Tal como hipotecou boa parte da sua credibilidade artística com o seu fulgurante percurso de música ligeira (que lhe pagou as contas). A fraqueza da obra de Cid é, estranhamente, ser tão multifacetada. E por isso Cid não se pode queixar de o seu nome ser, ainda hoje,recebido com um sorriso irónico, por mais que tenha feito discos de jazz, seja um grande músico ou tenha desenhado este 10.000 anos depois entre Vénus e Marte.
Mais importante que tudo: Cid está vivo e bem vivo. E o que fala é a sua obra. Com disco novo a caminho, o seu amor pelo rock tem ainda novos capítulos para nos dar…
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(Fotos: olhos(«Ä»)zumbir)