
Depois de um desterro longo em Londres, Luís Nunes regressa finalmente a Portugal, dividindo-se entre o Alentejo profundo onde agora vive e a efervescente Lisboa onde tantas vezes trabalha. Com a nova geografia que a sua vida tomou, Luís sente que o seu país é demasiado grande para caber numa canção em inglês: «não dá para escrever canções sobre a rua do Alecrim nesta língua», remata com inteira razão. Mas um empecilho corrói as suas aspirações: o maldito Walter Benjamin, que sempre cantou na língua de Dylan e de Lou Reed, e cuja sombra demasiado grande não permite nada medrar à sua volta. Pouco a pouco, uma ideia começa a assolar a pérfida mente de Luís Nunes: livrar-se de vez desse maldito estrangeirado com nome de filósofo, condição sem a qual é impossível renascer em termos criativos.
Contudo, não é fácil pôr em prática os seus macabros intentos. Walter não subira sozinho, tem muitos amigos e quase todos fazem parte do filet mignon da actual pop portuguesa, nomes imensos como B Fachada, Márcia, You Can’t Win Charlie Brown, Minta, Tape Junk ou Bruno Pernadas, todos eles velhos companheiros de estrada de Walter e sua leal guarda pretoriana. Luís Nunes depressa percebeu que só havia uma maneira de entrar na muralha: virar toda esta malta contra o seu amigo, incentivando a traição com torpes insinuações e infames mentiras: que Walter Benjamim sempre se julgara a rainha da pop portuguesa; que se achava muito acima do que ele chamava «a demais plebe da Pataca Discos»; em suma, que todos os que não eram ele eram «a casta inferior da pop nacional». Todos acreditaram demasiado depressa, o que só tem uma explicação: por detrás de todas as mentiras, há sempre um fundo de verdade. Todos participaram no conluio para o eliminar.
O plano urdido por Luís era simples: marcar um concerto de Walter Benjamin no Lux e, em plena noite de Black Balloon, à frente de todos os fãs, apunhalar o vil cantor no clímax da noite. Só Francisca Cortesão se furtou à coisa, alegando que estava doente (há quem diga que foi pressão da sua editora, receosa que a associação com o homicídio prejudicasse a sua carreira).
De resto, todos os vingadores estavam lá: João Correia na bateria (conhecido como o John Bonham português); Nuno Lucas no baixo (o John Paul Jones tuga); metade dos You Can’t Win, Charlie Brown nas vozes (Afonso Cabral, Salvador Menezes e Tomás Sousa); o gigante Fachada nas teclas e na voz esganiçada; o sofisticado Bruno Pernadas na guitarra eléctrica; o editor João Paulo Feliciano numa fugaz aparição nas teclas; Manuel Dordio dos Minta & The Brook Trout na slide guitar; António Vasconcelos Dias na segunda bateria; Selma Uamusse dos Wraygunn num dueto incrível com Walter; José Vasconcelo Dias, Pedro Girão e Jakob Bazora nas teclas; e até dois elementos dos Capitão Fausto, Domingos Coimbra e Tomás Wallenstein (não respire, pode respirar). Em poucas palavras: toda a geração de ouro da nova pop portuguesa, encavalitada num palco de poucos metros quadrados (caísse ali uma bomba não haveria concertos nacionais de jeito nos próximos vinte anos).
O alinhamento foi o do costume: o soberbo The Imaginary Life of Rosemary and Me na íntegra, alguns clássicos do primeiro disco como «The Cannonball» e «Soldiers», pérolas perdidas como «Paris» e «Johnny and Lucy», o novo single «Drive Anyway» (interpretado ao vivo pela primeira e última vez), este último com um delicioso solo de Bruno Pernadas.
Walter Benjamin sentia-se heróico, qual general romano regressando triunfante à capital do império, expondo orgulhoso os despojos dos bárbaros conquistados. Mal sabia ele o que lhe estava prestes a acontecer. No final do concerto, já no encore, Walter Benjamin cantou pela última vez «We Might Never Fall in Love». Visivelmente comovido, Walter desceu do palco, banhando-se na multidão, e estendendo o microfone aos fãs também emocionados que entoavam todos juntos: «but you can kiss me anyway». Até que, sem ele estar à espera, o público levanta-o nos braços, aclamando o seu herói. É nesse momento que os traidores descem do palco, e, um por um, o apunhalam sem piedade, qual Brutus esfaqueando o próprio pai, o Lux todo empapado de sangue e os fãs incrédulos com o rosto salpicado com a seiva vermelha viva do seu ídolo. Antes do seu último estertor, Walter ainda teve tempo de sussurrar: «não existe melhor sítio para se morrer do que um sítio onde se dança». E tinha razão.
Alinhamento
Our imaginary House
The cannonball
Twenty Four
Paper Boat
Johnny & Lucy
Airports and Broken Hearts
Drive Anyway
Soldiers
Paris
Sharing Cigarettes
Under Uour Dress
Your House
High Speed Love
Mary
Encore
We Might Never Fall in Love