O momento político que atravessamos é espesso. Não se antevêem unanimidades, acordos tácitos nem muito menos cooperação. Andam todos de candeias às avessas, os impérios assustados e os líderes perseguidos. A História, essa é sempre a mesma: desde os Acádios aos Romanos, passando pelos Egípcios e os pelos Fenícios, e acabando nos Russos, todos querem, sem excepção, mandar no mundo. Mas o mundo não dá para tantos Narcisos. É demasiado pequeno para tanta fome! Temos que dividir o repasto pelos demais comensais. Mas tal como na ciência, na História também há excepções. Uma delas é a Mesquita-Catedral de Córdoba. E reparem na graciosidade desta meia-risca. Na forma subtil e airosa como este sinal de pontuação junta duas coisas aparentemente ilógicas- uma mesquita e uma catedral. Em tempos, na Terra que tão bem conhecemos, a Terra onde todos querem mandar, cristãos e muçulmanos coabitaram pacificamente. Pois pasmem-se os que desconheciam este património da humanidade, rejubilem de novo os que já sabiam de tamanha proeza. Mas que fique bem claro uma coisa, é possível!
Rabih Abou-Khalil – Songs For Sad Women (2007)

O disco que vos trago retrata outro episódio de feliz comunhão. Um libanês, um arménio, um francês e um americano. Juntos em nome de uma nação chamada Música.
Impregnada de inspiração e audácia, em igual medida, a música do compositor e intérprete libanês Rabih Abou-Khalil, sempre se estendeu para lá das fronteiras musicais. É sem dúvida uma música que abraça a tradição, mas que também a desafia. Em Songs For Sad Women Abou-Khalil constrói um descomprometido conjunto de músicas com ar de música de câmara, mas com a alma da música popular intemporal.
A combinação do seu alaúde com o duduk do arménio Gevorg Dabaghyan (um instrumento de palheta dupla relacionado com a corneta cujas origens pré-datam tanto o cristianismo como o islamismo), somados à bizarra serpente (um primo barítono da tuba, que mais parece um hieróglifo egípcio) soprada pelo francês Michel Godard, compõem um quadro sonoro difícil de definir. Por sua vez a percussão do americano de Iwoa, formado em técnicas de percussão mais a oriente, ajuda o disco a aprofundar as suas raízes exóticas. Em Songs For Sad Women o Médio Oriente junta-se ao Norte de África e ao Jazz americano para, num secreto encontro amoroso sem preconceitos, satisfazer curiosidades de miscigenação.
Nas músicas deste disco, o alaúde de Abou-Khalil é discreto e de bom gosto, não só no prisma de guitarristas de Jazz tipo Jim Hall, mas particularmente pela forma como seus solos parecem evoluir a partir de nada, gradualmente seduzindo o ouvinte. Tomemos como o exemplo o seu maravilhoso solo em «How Can We Dance If I Cannot Waltz», que tipifica exemplarmente a abordagem Van Der Rohe em relação ao virtuosismo artístico. Em «Best If You Dress Less», podemos imaginar a diáspora do alaúde, vindo do Médio Oriente em direcção à Península Ibérica.
Nos últimos anos, Abou-Khalil tem vindo a substituir o contrabaixo pelo eufónio ou pela tuba. Neste disco, é a vez da serpente sair do esconderijo. À semelhança dos instrumentos referidos, a serpente é utilizada, em muito, da mesma forma que um contrabaixo. No entanto empresta ao acto uma riqueza de latão, especialmente nas linhas em uníssono. A outra metade da secção rítmica fica a cargo de Jarrod Cagwin, que em todo o álbum demonstra uma entrega arrebatada.
Este é sem dúvida um bom grupo. Com certeza, um dos melhores que Rabih Abou-Khalil conseguiu reunir até hoje. Gevorg Dabaghyan destaca-se no duduk; o seu triste, solitário e simultaneamente apaixonado sopro em «Mourir Pour Ton Dècolletè» é tão expressivo quanto a voz humana. Uma música que poderia perfeitamente ser um lamento de todas as mães de Jerusalém para Beruit, e do Curdistão Turco para Bagdade. Mas apesar do seu título, o álbum é tudo menos uma lamentação, embora se incline mais para a a beleza e paixão que existem, em grande medida, na melancolia e na tristeza.
Songs For Sad Women é uma edição altamente gratificante na discografia de Rabih Abou-Khalil. Um testemunho de graciosa poesia que perdura na memória dos ouvidos mais sentimentais.
João Afonso
Se me perguntassem hoje o que é que queres ser, eu diria não sei. Mas há duas outras três coisas que tenho a certeza absoluta. Uma delas é a música. Nunca aprendi por achar uma seca ler pautas. Por isso prefiro tocar de ouvido. E ouvir muita, muita música! De A a Z, até enjoar. O que acaba por nunca acontecer. E daqui poderia partir para uma teorização mais ou menos filosófica do que é a música. Ora, vou poupar-vos a esse desmazelo retórico. Tirem-me o cabelo, tirem-me o bacalhau, tirem-me a viagem de um mês à Nova Zelândia, mas por favor não me tirem a música. Isso não…
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