O disco Still Life, de Kevin Morby, foi lançado sensivelmente a meio de Outubro pela editora Woodsist, vindo ainda a tempo de irromper no meu universo de discos favoritos deste ano.
O ex-baixista dos Woods e líder dos Babies lançou o seu primeiro LP há menos de um ano, no final de 2013, e esse Harlem River era já um disco muito bom (possivelmente tão bom quanto este). Mas Still Life é o novo. É um disco de despedida; e a ficção de Morby leva-nos para um território onde há um fim de linha permanente – ora com alguém, ora com um espaço, ora até, por vezes, consigo mesmo. Há decepção e há raiva reprimida que por vezes se solta, mas que se gasta toda no início: sobra depois o tormento e o adeus final; uma anulação de toda a realidade que ainda o prende. Uma partida ilusoriamente pacífica, ou uma ilusão de permanência que é mera fraude. É, também, um disco de desencontros permanentes, de guerra interna em busca de paz, de fantasias e ilusões. E é um grande disco, feito de grandes canções.
No meio de órgãos, guitarras, coros desavergonhados, vozes distorcidas que parecem vindas de um passado distante, há de tudo pelo disco: ora frenesim compulsivo, em ritmo quase-demoníaco que por vezes origina uns quantos gritos amargos de raiva; ora contenção melancólica nos arranjos e beleza foleira de celebração católica (com coros que recordam envergonhadamente o gospel americano) numa canção sobre a morte. Talvez se possa referir a influência de Bob Dylan: há canções frenéticas que nos recordam a pulsão acelerada e cortante de algumas das canções de Bringing It All Back Home, por exemplo, embora os temas sejam bem diferentes. Oiça-se também o final de «Motors Running» ou a canção-título, que em pequenos pormenores, aqui e ali, evoca muito ligeiramente a belíssima «It’s All Over Now, Baby Blue de Dylan: torna-se tudo, então, mais evidente.
«All of my life», o single, é uma canção de dúvidas: K.M. tanta canta «All of my life / Spent on you / Just to be by your side / But you never came» como atira logo de seguida: «And you’d call my name / just to disappear”» para rematar com um «It was only a was / You never do what / You say.» Parece tudo um emaranhado de «ses», como se se tratasse de um olhar decepcionado para o passado,. Há também «Drowning», com um arranjo minimalista, quase confessional, onde Morby canta desapiedadamente «All that I’ve done wrong / as found me»; e onde expele, como se estivesse a cantar a coisa mais sedutora do mundo, um doloroso: «Then we’re drowning».
«Bloodsucker» é uma canção de uma tristeza devastadora, onde continuamos a viajar pelos fantasmas de Kevin Morby, que nos canta versos duríssimos como «I’m trying to make peace inside today / I’m trying but it’s not working», ou «It’s been so long / I don’t know what / we’re fighting for». Em «Parade» há uma brincadeira em simulacro da própria morte: os coros femininos e a ideia que passa de uma esperança feliz e transcendente, quase celestial, choca, por ser cantada com tanta (aparente) suavidade. Há «Dancer», que tem uma delicadeza instrumental lindíssima, e «Amen», em alguns momentos impressionantemente parecida com algumas canções de Days Of Being Wild, de Matt Kivel, (pela atmosfera ilusoriamente leve e bonita, mas que é na realidade suavemente melancólica, triste e saudosa); a que Morby junta ainda a estranheza de um mundo distante, projectando uma voz que parece chegar-nos de um passado longínquo (tipo máquina do tempo).
Este é, na realidade, um disco também sobre o processo contínuo que é a morte (gradual, de aproximação crescente. «My friend / won’t you say a pray for me / I’m not dead / But I’m dying / So slow», canta-nos Kevin Morby em «Amen» (e não dá para não recordar a voz de Dylan cantando «Sometimes my burden / is more that I can bear / It’s not dark yet / But it’s getting there). Mas tudo acaba com um «Sing to me / Keep me warm / From the storm outside», em «Our Moon», qual «Shelter From The Storm» do Séc. XXI (e haverá ideia artística mais moderna e mais bonita que a de encontrar nos outros um refúgio do mundo?) Se isto fosse a vida seria não uma carta de suicídio, mas pelo menos uma contraditória carta de despedida, como se Morby estivesse a ser derrotado pelos seus fantasmas na procura de um novo começo. Mas Still Life é arte; e é um grande disco, compulsivo e terminal, de que só podemos esperar continuação. Só desejamos que Morby e os músicos que o acompanham nos continuem a assombrar com estes gentis murros no estômago.
Still Life