Pode um disco ser um autêntico caldeirão de influências, sendo que no interior dessa mistura é que se encontra a verdadeira identidade da banda que o criou? Sim, pode. Aliás, já aconteceu inúmeras vezes ao longo da história da música do século passado. O interessante, neste caso, é perceber-se que isso não surgiu propositadamente. Explico melhor: Screamadelica não terá sido pensado como um projeto uno e coeso, mas como um disco que reunisse singles e lados B. No entanto, a misturada foi tanta e resultou tão bem, que a partir da data do seu lançamento, Screamadelica passou a ser a obra de referência dos Primal Scream, e em todos os passos que o grupo deu no seguimento da sua carreira, foram constantes as mudanças de rumo musical. Screamadelica continha, por assim dizer e de forma condensada, o futuro caminho musical da própria banda: a diversidade. Também é certo que em Screamadelica há alguma coisa de Stones, de Roky Erickson, de Jah Wobble, entre outros, sendo que nos discos seguintes do grupo, muitas dessas influências se transformaram em sons próximos dos sons dos Neu!, dos CAN, do punk e até de um certo hardcore. Mais ainda, Screamadelica influenciou o futuro próximo da música britânica, o futuro que se encontrava ao virar da esquina do tempo. Sem este disco era bem possível que os Oasis, os Blur e outros reis da Britpop nunca se dessem a conhecer ao mundo exatamente da forma como o mundo os conheceu. Para o bem ou para o mal, isto foi mais ou menos o que se passou.
Screamadelica é um álbum com lugar garantido na história da música. Disso ninguém duvida. Desde logo pela qualidade inegável das suas composições: «Loaded», «Movin’On Up», «Higher Than The Sun» ou «Shine Like Stars» são autênticas peças de puro génio musical. O rock, a pop, o dub, o acid e outros variados ingredientes resultaram perfeitamente em conjunto. Aquilo que à partida parecia não ser conciliável, acabou por ganhar contornos mágicos e intemporais. Aquele que é considerado um dos discos da história da música em que as drogas mais influência tiveram na sua feitura (a revista Uncut até já lhe dedicou um artigo especial de várias páginas a propósito desse facto), vive em nós há mais de 20 anos, sem quaisquer problemas de identidade. Não há grandes vantagens em catalogar um disco como Screamadelica. Aliás, e em abono da verdade, penso mesmo que é tarefa impossível. Pertence à sua própria e exclusiva categoria. É um disco livre e libertador. Trouxe coisas novas ao mundo do pop / rock, nomeadamente todo um manacial da emergente cultura techno, da house music e das raves. Por outras palavras, mudou o panorama convencionalizado. Nunca mais os Primal Scream conseguiram um feito semelhante na sua carreira. Atrevo-me até a dizer que nunca mais conseguirão produzir um disco tão marcante como esse opus de 1991. Apesar de tudo, e já o disse noutro texto publicado neste mesmo site, o que sempre me agradou nos Primal Scream, e sobretudo na figura do seu frontman, é a capacidade que desde cedo mostraram de assumir o risco, de mudar de caminho, de tentar inovar. Algumas vezes erraram o alvo, outras vezes acertaram, mas nunca da forma perfeita conseguida em Screamadelica. Por tudo isto, Bobby Gillespie e companhia merecem o estrelato infinito. Merecem todos os elogios, todas as considerações, todo o nosso respeito. A arte de Screamadelica é imorredoura, elástica e tão absolutamente artificial como o combustível ilícito que lhe deu força para existir. Assim continue, como continuará, com toda a certeza, a ser visto e entendido como um dos raros discos que mudou o curso da história da música na última década do século passado.
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