Barcelos. Pequena cidade minhota que tem mais bandas do que habitantes. Ninguém sabe bem que água miraculosa corre no rio Cávado, mas o que é certo é que a nata do underground português continua a medrar perigosamente nas suas margens: bandas do camandro como os vanguardistas La La La Ressonance, os apunkalhados Glockenwise e os psicadélicos Black Bombaim. Quem é mais céptico quanto às propriedades criativogéneas de simples moléculas de água (nada mais do que um átomo de oxigénio para dois de hidrogénio, insistem) avança com outra explicação: numa cidade pequena onde as ofertas culturais institucionalizadas são praticamente inexistentes, tem de ser o pessoal a mexer-se para preencher o vazio. O tédio absoluto é afinal a pedra de toque da efervescente cena de Barcelos. «Make boredom, not war», alguém escrevinhou na ponte de Barcelos.
Mas não nos dispersemos mais na nossa sociologia da loja dos 300. Vamos direitos ao assunto que nos trouxe aqui: os gigantes Black Bombaim. A origem do nome – uma marca imaginária de haxixe holandês, gentilmente roubada ao clássico dos Mão Morta «Amesterdão Have a Big Fun» – denuncia a sua matriz psicadélica: três amigos que cresceram juntos na mesma cidade-aldeia, primeiro a trocarem entre si discos dos Grateful Dead, mais tarde trocando alucinogénios patenteados pelos Grateful Dead. Na primeira trip de ácidos que tiveram em conjunto, estabeleceram contacto com o fantasma do Hendrix que, qual Deus no monte Sinai, proferiu o seguinte mandamento: «Façam um power trio psicadélico à imagem e semelhança da nossa Experience mas não cantem que ainda hoje as minhas cordas vocais estão todas fodidas.» Os três amigos nem pensaram duas vezes: compraram de imediato um baixo, uma guitarra, uma bateria e cerca de 700 cogumelos mágicos. Nenhum microfone para a voz.
E a obra foi nascendo: o EP Black Bombaim em 2009; o álbum de estreia Saturdays and Space Travels em 2010; e o disco de aclamação Titans em 2012 (o tal que contou com a colaboração de grandes nomes do rock underground, como o Adolfo dos Mão Morta, o Steve Mackay dos The Stooges e referências da banda como o Noel Harmonson dos Comets on Fire e o Isaiah Mitchell dos Earthless). A consagração internacional surge em 2013: a primeira banda portuguesa a tocar no Roadburn, o mais prestigiado festival internacional de rock underground – a meca do rock psicadélico que todo o verdadeiro acid head deve visitar pelo menos uma vez na vida. E tudo isto sem a bengala de um vocalista ou de um frontman.
Tendo chegado ao patamar mais alto a que uma banda de rock fora do mainstream pode ambicionar, os Bombaim já não têm mais que provar a ninguém. No limite, os três bombains poderiam passar o resto da vida a fumar ganzas no adro da Igreja Matriz de Barcelos que já ficariam com o seu nome inscrito na história do rock português. É então com toda a tranquilidade que lançam agora o seu terceiro longa duração, o grande Far Out.
O disco tem duas faixas, uma por cada lado do seu suporte de eleição: o velho vinil de 33 rotações. Os nomes das faixas, «África II» e «Arabia», revelam tudo sobre a natureza do álbum: viagens por territórios quentes e exóticos que não coincidem de maneira nenhuma com a África e o Médio Oriente reais. Os bombains nunca caem na armadilha da objectividade. As suas viagens – longas jams com um ponto de partida bem definido, mas com um ponto de chegada completamente desconhecido – são sempre mentais, deformadas orgulhosamente pela sua própria consciência revista e aumentada.
As músicas começam com riffs poderosos e obsessivos, cuja repetição nos induz um estado hipnótico bem consentâneo com o espírito semitribal de alguns dos territórios revisitados. Mais tarde, a guitarra liberta-se da prisão do riff e começa a voar rumo ao desconhecido, solos de pura transe em que o cérebro perde o controlo e os dedos adquirem vontade própria. É neste momento que o real se dissolve por completo num estranho sonho, o local das grandes revelações.
Mas algo perturba a viagem. Vindo ninguém sabe de onde, aparece o saxofone de Rodrigo Amado (o grande convidado especial de Far Out, provavelmente o maior saxofonista português e um dos melhores do mundo), primeiro como quem não quer a coisa, num afro-beat low-profile, mas depois explodindo no mais desbragado free jazz, gemidos lancinantes de horror e desespero, como se a humanidade chorasse de uma só vez todas os abusos-humilhações-guerras-torturas-massacres-violações-eu-sei-lá acontecidos desde o princípio dos tempos. A viagem tem também o seu lado sombrio, e o espectro da bad trip abocanha quando menos se espera.
Foi tudo isto que eu senti a ouvir este grande, grande disco. São experiências pessoais e intransmissíveis: cada um fará a sua viagem, com tons e sabores muito diferentes dos que aqui apresentámos. Os Bombaim são apenas o xamã que nos conduz. Cabe a cada um percorrer os seus próprios labirintos interiores, com o disco em pano de fundo e com a sempre bem-vinda companhia de psicotrópicos. Ou talvez não. Todo o bom psych, por si só, expande a consciência.
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