O fim dos Beatles foi o mais público caso de separação de uma banda.
É difícil detalhar quando começaram os problemas entre os quatro membros, mas desde que a banda abandonou os concertos, em 1966, foram várias as vezes que um dos músicos ameaçou abandonar, ou abandonou para depois regressar. Isto durou até Setembro de 1969, quando Lennon anunciou publicamente que deixaria de trabalhar com a banda. Paul McCartney isolou-se com a sua família e começou a preparar o primeiro álbum a solo em segredo.
As gravações começaram em Dezembro de 1969 e “McCartney” foi lançado em Abril de 1970, beneficiando grandemente da popularidade da banda e alcançando o número 1 do top até ser destronado por “Let It Be”, lançado em Maio desse ano. A história do lançamento merece detalhe e é algo confusa, com pedidos para que fosse adiado por causa de “Let It Be”, de Março para Abril, e um conflito subsequente entre Paul e os outros Beatles que resultou com uma entrevista em que McCartney afirmou não ter sentido a falta das contribuições dos outros membros da banda. A partir daí nunca mais a relação dos quatro foi a mesma, com Paul a sentir que estavam “três contra um”.
O disco rejeita a orquestração e experimentalismo que caracterizaram os Beatles no final de carreira e centra-se em canções com arranjos mais simples. Reflexo do que as personalidades de Paul, John, George e Ringo sentiam nesta fase, os seus primeiros discos podem ser associados à sua forma de composição e de trabalho, mas também à forma como lidaram com a separação.
Neste aspecto Paul McCartney fez algo já tentado antes. O regresso às origens e simplificação de arranjos, sintomático da sua aproximação às composições. McCartney arranca com “The Lovely Linda”, canção de 44 segundos sobre a sua mulher, gravada em casa, com direito a sons de portas a chiar, para uma “That Would Be Something”, com uns toques da folk americana que sempre o fascinou. O músico, que na altura afirmou que o disco era sobre “casa, família e amor”, prossegue com a instrumental “Valentine Day”. “Every Night” aborda o refúgio que encontra na sua mulher após a separação dos Beatles. “Hot As Sun/Glasses” é outra canção instrumental com a segunda parte a ser tocada com copos de vinho, que dá lugar a “Junk”. Uma reflexão sobre memórias e objectos, tema várias vezes abordado em canções dos “fab four”, como em “In My Life”. Mais à frente existe uma versão instrumental, “Singalong Junk”. Esta música foi composta nos tempos de retiro na Índia mas nunca terminada para um disco dos Beatles. Aparece no bootleg “The Escher Demos”, em 1968, com várias músicas que deram origem ao “álbum branco”, mais umas de “Abbey Road” e discos a solo de Harrison e Lennon. Um arquivo interessante para espreitar o processo de composição e criação.
O sempre presente tema da separação dos Beatles volta a aparecer em “Man Was He Lonely”, outra canção com toques folk, com Linda McCartney a aparecer como segunda voz, naquele que foi o primeiro dueto do casal. O disco, que foi maioritariamente gravado em casa, prossegue com “Oo You”, faixa um bocado mais blues, para “Momma Miss America” o terceiro tema instrumental do álbum. Sobre este e outros instrumentais, Paul assumiu que começou com um instrumento e foi adicionando camadas como improviso. “Teddy Boy” é outra canção que foi composta previamente, em 1968, mas que nunca chegou a ter uma versão final no tempo dos Beatles. Mesmo antes do final surge “Maybe I’m Amazed”, sem dúvida a mais marcante canção do disco, novamente sobre a depressão do fim da banda e o apoio que encontrou em Linda McCartney, mas com uma dinâmica interessante, ao estilo do melhor Paul. Com “Junk” são as duas canções fortes deste álbum que, apesar da dupla platina, não foi visto na altura como uma obra prima. O álbum termina com a instrumental “Kreen-Akrore”, inspirada numa tribo de índios no Brasil.
Este disco começou a cimentar a ideia de que Paul McCartney não é irreverente ou ousado nas composições. Sempre considerado um dos Beatles que opta pelo caminho mais fácil e pela música mais básica, especialmente por entrevistas de John Lennon, que chegou a descrever o medley de Abbey Road, (creditado especialmente a McCartney e George Martin) como “junk” ou a música “How Do You Sleep” de 1971, em si uma resposta a “Too Many People”, editada em “Ram” de McCartney. Não ajudou também o facto de a crítica de então não ficar impressionada com este que foi o primeiro álbum a solo de um dos membros dos Beatles.
O disco, gravado em casa, tem um toque lo-fi e o músico parece pouco preocupado na perfeição musical, entretido em experimentar os vários instrumentos. Mas que isso não seja motivo para questionar o talento de Paul em qualquer momento. “McCartney” mostra um momento de procura de identidade em que o compositor toca todos os instrumentos e se deixa levar pela simplicidade das canções. Podemos ficar com uma impressão inicial de que as faixas poderiam ser mais trabalhadas mas não podemos cair na comparação fácil, feita na altura e ainda agora, com “Abbey Road” na sua criação, objectivo ou resultados. Os fragmentos ou canções que poderiam, eventualmente, ser trabalhadas num medley ou transformadas em outras composições não o são porque “McCartney” não quer ser Beatles, sabendo perfeitamente que nunca poderá deixar de sê-lo. Paul McCartney procura a sua identidade a solo como músico e vai encontrá-la junto da família, neste disco sem artifícios.