É new wave? É pós-punk? Não, é Talking Heads!
Do punk dos Ramones, seus compinchas no esconso CBGB, os Talking Heads retiveram o amor à simplicidade e a ética faça-você-mesmo-e-deixe-se-de-merdices. A partir daí, reinventaram tudo outra vez, derrubando todas as regras não escritas do velho rock’n’roll. Foi assim que chegaram ao seu funk pop intelectual e neurótico, miúdos brancos das escolas de artes tentando dançar e falhando.
Os Heads são assim, uma coisa e o seu contrário, só para chatear: dissonantes e melódicos, anti-sociais espalhafatosos, cerebrais idiotas, irónicos mas sinceros no seu distanciamento, utilizando-o como um bisturi preciso para escalpelizar o estranho mundo à nossa volta. Como se não houvesse já suficiente excentricidade, soma-se aquela voz esganiçada de desenho animado, ao pé da qual Rui Reininho é João Gilberto, Rui Reininho é Frank Sinatra.
A partir do segundo disco, Brian Eno junta-se à trupe como produtor, aumentando ainda mais a gula experimentalista dos Heads. O auge do arrojo é atingido em Remain in Light, a sua consensual obra-prima.
Se o lado A é frenético e tribal (Fela Kuti cheirando coca em Abuja), o lado B é introspectivo e atmosférico (privação de coca de Bowie em Berlim). Há, porém, continuidades. Encontram-se os dois na mesma fobia à progressão de acordes, abrindo assim espaço para outras fontes de beleza: os polirritmos africanos do lado A (um festim de ritmos independentes uns dos outros, todos ao molho que Deus no fim resolverá) e as texturas distópicas e opressivas do lado B, Joy Division para groupies de Foucault e Derrida.
O que é curioso é que um disco tão radicalmente anti-pop seja, ao mesmo tempo, tão saboroso e acessível. Veja-se o caso de “Once in a Lifetime”, um dos hits mais bizarros da história da pop. Byrne não canta, prega, como se fosse um pastor da IURD, perguntando-nos, com a sua entoação exuberante e fanática, se algum dia nos sentimos estranhos perante a nossa própria vida (quem nunca teve uma crise existencial que atire a primeira pedra). Os teclados são repetitivos e desagradáveis, expressando a monotonia absurda do quotidiano, com a tensão a acumular-se até níveis exasperantes. Por fim, tudo extravasa num refrão absurdamente orelhudo, o momento da nossa súbita epifania.
Ora a pergunta do milhão de dólares é: para quê ler 300 páginas de Camus quando existem 3 minutos de Talking Heads? Preguiçosos de todo o mundo, uni-vos, desde que nunca tenham de sair do enlevo do sofá. O caminho mais curto para a sabedoria sempre foi o de uma boa canção pop. Sempre o foi e suspeitamos que sempre o será.