Foi o ponto final. Na despedida, alguns bons concertos, mas Khruangbin merecerá a medalha de ouro. Até para o ano, Primavera!
Três dias para compensar três anos. Eram mais ou menos essas as contas. Bateram certo e tudo se esfumou num ápice.
O início do fecho do NOS Primavera Sound deu-se com Dry Cleaning no palco Cupra. O som característico da banda foi o suficiente para reunir um bom conjunto de apreciadores. Som de guitarras estridentes, algo pesadas e voz meio falada, meio sussurrada de Florence Shaw, a alma do conjunto, de olhar profundo e perturbante, unhas negras como garras, lábios carregados de vermelho vivo. No entanto, desta descrição algo gótica, resulta também uma certa postura de colegial (falsamente) inocente. Mas vamos aos restantes membros da banda. Vale a pena passá-los a pente fino: parecem um de cada nação; o guitarrista punk, a já referida vocalista emo/gótica saída de um episódio da Guerra dos Tronos, o baixista metaleiro e o baterista snowflake, betinho de colégio privado (e o único vestido de branco). Com esta amálgama conseguem criar uma sonoridade com alguma ginga e pareceram ter ficado agradavelmente surpreendidos pela adesão do público. Pena este concerto ter sido a esta hora quase matinal, pois merecia um horário mais nobre por parte da organização. Momento com muita pinta: a banda dedicou uma canção a Paula Rego.
Por mera curiosidade, ainda deu tempo para irmos espreitar David Bruno no Palco Super Bock. Quando chegámos, estava a acabar. O que vimos? Dois adultos em exercício de flexões (Janes Fondas em calções e meias brancas quase até aos joelhos) e um ritmo em formato de canção meio desengonçada. A seguir, uma canção (“Festa de Espuma”) dedicada a “uma discoteca da terra dos meus avós que não vale um peido”. A “nova música irónica portuguesa” também é isto. Há quem goste, e por nós está tudo bem.
A sete minutos de distância, esperava por nós Helado Negro, de regresso às terras lusas. Aquele jeito de Devendra Banhart fingido, ao início do fim da tarde, soube mesmo bem. A música de Roberto Carlos Lange tem um encanto particular, parece haver nela um sol escondido, mas sempre à espreita. Apenas com três pessoas em Palco (e logo no principal) fomos todos dançando timidamente, embalados pelas canções de Helado Negro. Alguns dos temas de Far In, o disco de 2021, soltaram-se pelo Parque, e com elas ficámos até ao fim, em harmonia fade out com o artista.
Dificilmente, lá conseguimos chegar a Khruangbin. Uma avalanche de gente, mais ou menos como no primeiro dia. Foi, felizmente, um concerto de excelência. Os Khruangbin (não deveria ser possível a existência de nomes de bandas quase impronunciáveis) são muito competentes naquilo que fazem. Excelentes momentos de instrumentação, por vezes pontuados pela voz de Laura Lee Ochoa. O nome do trio merece menção: para além de Laura (baixo), há ainda Mark Speer na guitarra e Donald Ray “DJ” Johnson Jr. na bateria. Que bela mistura fazem de soul, rock, dub e algum psicadelismo. Resulta lindamente, de facto. Aqueles breves momentos de “Let’s Dance”, de Bowie, foram lindos! É, poderemos dizer, uma banda do mundo, estes meninos. São ainda a prova de que a música pode também prescindir de palavras. Sempre dançáveis, sempre repletos de swing. A anca, claro, é que paga. Ainda bem que assim é, que assim foi. O concerto do dia, sem dúvida!
E como tudo se faz a correr em festivais, lá fomos nós ouvir o veterano Dinossauro que julga ser júnior. Não engana, não há surpresas com este senhor. Toda a gente sabe ao que vai. O rock alternativo americano tem sempre carimbo semelhante, e este já dura desde os anos 80, se a memória não nos falha. Alguma distorção bem arranjada, melodias mais ou menos orelhudas, muitos saltos por entre o público e algum cheiro a substâncias ilícitas. Boa surpresa, a cover de “Just Like Heaven”, dos The Cure. O rock à bruta, meio atabalhoado, é uma lição de como fazer simples. Rock resultadista, sem dúvida. Eficaz para quem procura o que o velhinho Dinosaur Jr. tem para dar. E pela multidão à sua frente, ainda está para dar e durar, apesar de parecer mais um concerto apenas, se é que nos fazemos entender.
Mudar de estilo é coisa típica de quem cobre festivais. Por isso, passámos a fronteira para o hip hop neosoul de Little Simz. Com gorro Jah na cabeça e com uma atitude de quem pode dominar o mundo, o concerto foi festivo. O particular hip hop de Little Simz não se faz com beats mais ou menos pré-fabricados, longe disso até. Por vezes, faz lembrar Ursula Rucker, dos tempos de Supa Sister e de Silver or Lead. Outras, junta-se mais ao hip hop algo indistinto, mas não é por aí que navega com mais frequência. Palavrosa, como é típico do género, Little Simz tem mensagens para transmitir. Algumas com espessura, outras com bastante piada: “All I do is kill shit, shit, even when I’m chillin’ / I’m Jay-Z on a bad day, Shakespeare on my worst days”. Para mais, a banda que a acompanhou foi competentíssima. Para primeira vez em Portugal, passou a prova. Pode voltar à sua Londres satisfeita.
Os Interpol gostam de brincar aos clássicos. Sempre gostaram, e talvez brinquem e joguem esse jogo há demasiado tempo. O que queremos dizer é que se colaram a uma imagem, e nela permanecem, construindo a sua carreira dessa forma. Nada criticável. É uma opção como qualquer outra. Por mais que baralhem as cartas, o trunfo é sempre o mesmo e conhecido de todos. E, de alguma maneira, isso ainda hoje se nota. Foram, com a passagem dos anos, perdendo o destaque que tiveram de início. É normal e humano, digamos assim. Os Interpol nunca foram deuses, por isso seria mais ou menos inevitável que isso viesse a acontecer. Talvez estejamos a ser injustos com quem já gozou de bom mérito. Mas quanto ao essencial, ao concerto propriamente dito, foi navegável, a “onda”. Mais ou menos a mesma de 2019, no NOS Primavera daquele ano. Não nos pareceu que houvesse grande entusiasmo em quem os foi ouvir. No entanto, a guitarra infecciosa (nos tempos que correm é melhor dizer assim do que dizer viral) de Paul Banks continua ativa e precisa, e há temas que permanecem clássicos (a justificar o adjetivo, obviamente). Mas o homem que já foi Julian Plenti, pouco tem agora a oferecer. With all due respect.
Os Gorillaz, a banda que já foram bonecos em palco e que agora são de carne e osso, surgiram à hora marcada no palco principal do Parque vida Cidade. E logo à segunda canção (“Strange Timez”) fizeram-se acompanhar por Robert Smith na voz e nos ecrãs. Depois, Damon Albarn, de estridente casaco cor de rosa, desceu até ao público, coisa que aconteceu algumas vezes mais. Foi o início da longa comunhão que já se sabia que iria acontecer. E como era “saturday night” (na verdade já não) os versos de “Tranz” combinaram com a data. É gira, a banda sonora de crianças para adultos Peter Pans. Gira e dançável, claro. A bonecada em imagens por detrás dos músicos animou ainda mais o convívio. Boa surpresa, a presença de Beck, que na noite anterior, naquele mesmo palco, surgiu em formato furacão com o seu espetáculo, para ontem cantar com Albarn o tema “The Valley of the Pagans”. Mais ainda, Little Simz e os De La Soul também estiveram em palco. Momento alto: “Melancholy Hill”, clássica e ótima canção destes bonecos animados.
Estávamos a chegar ao fim da edição do NOS Primavera Sound de 2022. Três dias de muitos e bons concertos, animação e convívio. O que mais desejamos é que o próximo demore apenas o tempo certo. E, sendo assim, a despedida será… até para ano, Primavera!
Fotografia: Inês Silva
*mais fotos brevemente