Foram três longos anos de espera, mas valeu a pena. Estamos de regresso aos Festivais. E para sorte nossa, o anjo negro esteve connosco em comunhão, abençoando-nos a todos.
E pronto, a festa começou. Já não era sem tempo. Três anos de espera é muito. Tanto, que todo o recinto do Parque da Cidade mudou. Coisas novas, espaços reinventados, mas a gente festivaleira do costume. E assim, sem perdermos tempo, fomos diretos ao Palco Cupra em busca do bom ruído dos DIIV, a lembrar Wire, pois claro, com pendor para o shoegaze. Um concerto de guitarras, sobretudo. As canções mais aplaudidas terão sido, porventura, as canções do primeiro álbum da banda, mais icónicas do que todas as outras. Pelo menos, é assim que pensam os nossos ouvidos. Mais etéreas, talvez, sonhadoras ou a permitir o sonho. O sonho do regresso. Coube aos norte-americanos de Brooklyn torná-lo audível e real. Muito se dançou, a cabeça quase sempre a olhar para o chão, o corpo a rodar, os sons das guitarras em loop e salpicos de cerveja dançante por todos os lados. Foi bonita a festa, sim. O sol ainda estava alto. Um NOS Primavera Sound com tempo quente e sem chuva! Isto prometia!

Pouco depois, uma surpresa engraçada chamada Stella Donnelly, a iniciar o seu concerto no Palco NOS Primavera Sound para uma audiência que nunca teve, de tão extensa. A jovem australiana (mais uma down under – o que se passa com aquele povo, que de lá tanta coisa boa vem?) começou por lembrar Suzanne Vega dos primeiros tempos e assim foi-se mantendo, sem nada de novo, é certo, mas com uma simpatia melódica digna de registo. Uma mulher e uma guitarra em palco. Bonito, muito mesmo, a contrastar com a loucura controlada das guitarras do concerto anterior, também ele com carimbo daquela imensa ilha distante. A voz de Stella Donnelly é suave, melodiosa, toda a sua tímida presença em palco é de valor. Enfim, o seu tema “Boys Will Be Boys” diz muito daquilo que foi a raiz da nossa surpresa. Mas, na verdade, a cover de “Love Is In The Air” era escusável.

Era tempo de ir ver Kim Gordon ao vivo, a boa sobrevivente dos icónicos Sonic Youth. Já não se faz música assim, sempre à procura do inusitado, do ruído com sentido. Que belo concerto! Aquele baixo sabe da poda, sem dúvidas. Depois, é charme com erudição. Uma autêntica enciclopédia com muita música nas pernas, nos ossos, no corpo. Não era muito o público, mas o suficiente para ser caloroso. Via-se nas caras o que ia nas almas: uma senhora do rock à nossa frente, não é para todos os dias. Tivemos sorte! Como facilmente se perceberá, a escolha do dia é muito variada, e assim continuaria noite fora.
O atraso no concerto de Sky Ferreira foi aborrecido, mas como tem apelido luso, aguentou-se. Depois da “rapariga da banda”, o choque foi grande. Mas o pop atrevido da norte americana ouve-se com agrado, enquanto se bebe um “fino” e se conversa com amigos. Há muito que não gravava nada de novo, e o recente single, passados nove anos do álbum de estreia, tem sido bem acolhido. O concerto foi mexido, claro, como se esperava. Uma espécie de Kim Wilde com muita coisa ilícita na cabeça. Kim Wild on drugs, digamos assim, para facilitar. Atitude não lhe falta. Veio com uma chávena de chá na mão, mas o seu conteúdo não seria earl grey tea, for sure. Enfim, virámos a página ao fim de pouco minutos. A “tarde” começava a chegar ao fim (eram quase 21 horas).

Quem estava à espera de uma entrada de Nick Cave à “Carnage”, enganou-se redondamente. Foi mais à Grinderman, com “Get Ready For Love”. Entrou bruto, derrubando tudo à sua frente. “There She Goes Our Beautiful World”! E seguiu-se com homenagem falada à “great collection of beautiful fucking portuguese people” à sua frente. Parece que a purga se faz agora de rock. “From Here To Eternity” em altos berros, como convém. Que perfeita encenação do apocalipse! E depois do caos, “O’Children” arrefeceu os ânimos. Uma canção para “crianças”, como disse Cave com muito aceitável pronúncia. “Jubilee Street” continuou a acalmia, mas sempre com a inquietação a rondar por perto. O mesmo com a magia de “Bright Horses”, estupenda como sempre. Que tema bonito, elegante, complexo. Música dos anjos. Mas houve também, como já se havia percebido antes, idas ao baú, como “Tupelo”, ou “The Mercy Seat”, a par do espetáculo total e permanente de Warren Ellis, a tocar violino como quem toca guitarra. Foi um concerto de serenidade e de explosão, e por vezes só numa canção, como em “Red Right Hand”. E o pedido insistente: “just breathe, just breathe, just breathe”. Tudo acabou into his arms.
Pouco tempo sobrou para ouvirmos o intenso experimentalismo no wave dos Black Midi. Os jovens rapazes não facilitaram e fizeram justiça ao hype que vão granjeando. Fazem lembrar tanta coisa, que o que de forma imediata surge à cabeça de quem os escuta será, por exemplo, os Talking Heads dos primeiros tempos. Alguma vertente arty clever clever parece estar-lhes no sangue. Cada tema parece ainda um novelo emaranhado de tantos outros, mas que, por vezes, puxando pelo fio do que se escuta, há alguns desequilíbrios. A improvisação tem destas coisas e não podemos levar a mal, até porque são poucas as vezes em que parece que estamos perante a mais pura (e louca) invenção artística. Ali, à nossa frente, in our faces! Foi muito interessante.

Os Cigarettes After Sex cumpriram o que deles se esperava. Dá-nos sempre a ideia de que gostariam de ser como os Tindersticks, embora fiquem aquém, naturalmente. Mas algum encanto existe nas canções que fazem. Muita gente para os ver, na noite de ontem. Mas na cabeça estava ainda o concerto de Nick Cave (e a pergunta a martelar, qual o melhor, o de ontem ou o da noite do dilúvio, em 2018?) e os temas adocicados da banda de El Paso não se mostravam assim tão apetecíveis. Ainda por lá andámos algum tempo, até que os milhares que ontem estivem no Parque da Cidade rumaram até ao palco principal para a última grande atração do primeiro dia: os australianos (de novo os australianos) Tame Impala. E nós seguimos-lhes o rasto.

Festa de som e de laser, o concerto de Kevin Parker. O psicadelismo algo funk contagiou, de mansinho, a maioria dos presentes. E assim, aos poucos, foi acontecendo o concerto que primou também, diga-se, pelo espantoso aparato de luzes. Mas, na verdade, também alguma coisa falha, sobretudo se compararmos os primeiros dois discos dos Tame Impala com os últimos dois. Isso reflete-se nos concertos, claro. Não foram muitos os momentos verdadeiramente entusiasmantes. Ao fim de algum tempo, entrámos na sensação “mais do mesmo”, sendo que o “mesmo” não é necessariamente pobre, apenas talvez um pouco aborrecido. Enfim, a noite já ia longa, e algum cansaço começava a mostrar a sua presença. Como balanço deste primeiro dia, muita coisa boa a registar. Foi o que fizemos. Já tínhamos saudades desta azáfama. O segundo dia vai trazer-nos Beck e Pavement. Mas isso é toda uma outra história que contaremos a seu tempo.